Resumo do nosso ciclo de vida: na juventude, temos tempo e tesão, mas não temos dinheiro; quando adultos, temos tesão e dinheiro, mas não tempo; na velhice, ficamos com tempo e dinheiro e perdemos o tesão. Essa piada tragicômica reflete que o sistema de vida no qual estamos inseridos impede que homens e mulheres atinjam sua plenitude, alcançando todo o seu potencial humano. O mundo precisou de uma pandemia que só no Brasil matou cerca de 700 mil pessoas para que pudéssemos pensar em mudar alguma coisa, por menor que seja ela.
Dizem que toda jornada começa com o primeiro passo, e graças as redes sociais (elas podem servir para alguma coisa boa, afinal) o Brasil se inseriu nas discussões globais sobre alternativas para a redução da jornada de trabalho. O país, talvez por conta da herança escravocrata, tem hoje uma das maiores cargas horárias de trabalho do mundo. São 44 horas/semana, em seis dias de labuta e um de folga. Na Europa, a média são 37 horas dividias em cinco dias. Proposta articulada pela deputada Érika Hilton (PSOL-SP) prevê alterar a legislação para quatro dias de trabalho e três de folga sem redução no salário.
Não foi fácil acabar com 300 anos de escravidão no Brasil. Não será fácil acabar com a escala 6×1. As resistências pipocam aqui e ali, em reportagens, artigos, entrevistas, conversas. Até o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, já declarou ser contra a medida. A justificativa é sempre a mesma: a mudança não será boa nem para os trabalhadores, que vão pagar com o aumento do desemprego e da inflação em decorrência da perda de produtividade e do aumento dos custos das empresas. Desde 2033, 9 propostas semelhantes foram derrubadas pelo Congresso.
Érika apresentou a dela em maio, mas só ganhou impulso nas últimas duas semanas graças a mobilizações nas redes sociais. O Centrão, que controla a Câmara, já preparou uma resposta à pressão popular, dizendo que vai aproveitar esse projeto para aprovar lei para que o Brasil copie os Estados Unidos para que as empresas paguem apenas pelas horas trabalhadas. Além de ganhar por hora, à exceção do seguro-desemprego, o trabalhador americano não conta com nenhum sistema de proteção, a exemplo de FGTS, férias remuneradas ou multa por demissão sem justa causa.
Nenhuma vida cabe em planilhas de custos. Embora precisem ser considerados no debate, pois são preocupações justas e legítimas, os cálculos dos que até agora se opõem à medida não têm sido comprovados na prática.
A organização 4 Day Week Global conduziu testes-piloto com a escala 4×3 no Brasil e outros 13 países. Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Alemanha, Suécia, Holanda, África do Sul, Índia, Chile, Itália, Noruega, Bélgica e Suíça. Apesar de feito em um número limitado de empresas em cada uma dessas nações, a experiência mostrou que alguns resultados se mostraram o mesmo independentemente do local onde foi aplicado.
Os trabalhadores se mostraram mais felizes e satisfeitos. Eles relataram também redução na carda de estresse e na necessidade de faltar por causa de doenças. As organizações registraram, olha só, aumento de produtividade. Em torno de 80% dos trabalhadores afirmaram que não gostariam de retornar à escala antiga. Algumas empresas, inclusive, garantiram não só a permanência dessa escala para o primeiro grupo como ampliaram a experiência para novas pessoas e setores.
Segundo reportagem da BBC, em pelo menos dois desses países, Bélgica e Chile, aconteceram mudanças na legislação. Na Bélgica, desde fevereiro de 2022, os trabalhadores têm o direito à jornada 4×3. Mas lá, a carga horária semanal foi mantida. Ou seja, foi criado uma espécie de banco de horas, trabalha-se mais em um dia (algo em torno de 9h30) para ganhar folga em outro.
No Chile, a escala 4×3 é permitida desde 2017, mas ela só pode ser aplicada quando houver acordo entre empresas e trabalhadores (por meios de sindicatos que representem ao menos 30% deles). Na prática, pelo desequilíbrio de força entre o capital e o trabalho, a medida não vingou.
A 4 Days Week Brasil apresentou o relatório final em agosto. 21 empresas se inscreveram para o teste, mas duas delas desistiram, uma devido às enchentes no Rio Grande do Sul, e outra graças a uma troca de liderança. 252 funcionários, de vários níveis e setores, participaram da totalidade do piloto.
Afirma o documento: “a implementação da semana de 4 dias trouxe diversos benefícios significativos para a empresa. 83.2% dos funcionários perceberam uma melhoria na cultura da empresa, enquanto 80.7% relataram um aumento na criatividade, inovação e colaboração. A satisfação com o trabalho também cresceu, com 82.6% dos funcionários se sentindo bem com suas tarefas e 86.5% encontrando um maior senso de propósito e realização. Além disso, 87.4% relataram ter mais energia para realizar suas tarefas, 84.5% expressaram maior satisfação com seu trabalho e 85.1% afirmaram ter orgulho do que fazem. Esses dados sugerem que a semana de 4 dias não só melhora a qualidade de vida dos funcionários, mas também potencializa a eficiência e a eficácia das operações da empresa”.
Ainda: “Os dados financeiros dos 6 primeiros meses de 2024, em comparação com o mesmo período de 2023, revelam que a maioria (72.7%) das empresas participantes observaram um aumento na receita, enquanto 27.3% experimentaram uma diminuição. Em termos de lucros, 63.6% das empresas relataram crescimento, e 36.4% enfrentaram uma redução. Embora esses resultados positivos sejam notáveis, é importante reconhecer que a melhoria na receita e nos lucros não pode ser atribuída exclusivamente à implementação da semana de 4 dias”. Isso sem falar nos dados positivos no ambiente interno, como melhoria na colaboração e nas relações entre as lideranças e suas equipes e nos processos internos.
Ou seja, a experiência mostra que os ganhos de produtividade e de retenção e atração de talentos podem superar o aumento de custo que a mudança na escala pode trazer. Ao mesmo tempo, maior tempo livre favorece o consumo, motor do capitalismo. Os trabalhadores terão mais tempo para cinema, bares, restaurantes, viagens. Cadeias que geram empregos como turismo, entretenimento, cultura, bebidas e alimentação tendem a se beneficiar. Cidades como Salvador e estados como a Bahia, fortes nesses segmentos, devem sair ganhando.
Toda mudança gera impactos positivos e negativos. O ideal é que uma medida dessa seja amplamente debatido, com o objetivo de maximizar os benefícios e minimizar os prejuízos. Como é uma alteração estrutural na forma como nossa sociedade está alicerçada, também é importante que a discussão não se limite à escala, mas também ao custo e a divisão de riqueza do trabalho. O projeto, por exemplo, não deixa de ser uma oportunidade para as empresas discutirem a oneração da folha de pagamentos. O Brasil é um dos países onde o empresariado paga mais taxas e impostos sobre cada vaga de emprego que gera. Ao mesmo tempo, em tempo pode-se usar a nova escala para preparar e qualificar os trabalhadores para a chamada economia pós-industrial, outra mudança estrutural que deve provocar extinção de inúmeras profissões com a inteligência artificial. Uma possibilidade é adotar uma escala 5×2, na qual 1 dos 5 dias seria usada para a qualificação necessária para o trabalhador se inserir em um curso que o prepare para o mercado de trabalho.
Fonte: Correio da Bahia