Que político ou artista que se posiciona politicamente pode entrar hoje em um avião ou um restaurante com a tranquilidade de que não será ofendido? No Brasil, poucos.
A onda de hostilização a personalidades de diferentes espectros ideológicos abriu um debate no país sobre liberdade de expressão, crimes contra a honra e a saúde da democracia.
Para coibir casos do tipo, políticos cobram a responsabilização dos autores das ofensas, inclusive com a avaliação de novos tipos penais ou buscando enquadrá-los no crime de stalking (perseguição), sancionado em 2021.
Estudiosos, porém, avaliam que a criminalização pode não resolver e, se abrangente demais, arrisca penalizar manifestações legítimas.
Uma lista concisa de insultados só nos últimos dois meses inclui o cantor Gilberto Gil em um estádio no Qatar; Ciro Gomes (PDT) em um aeroporto nos EUA; Rodrigo Maia (PSDB) em um resort na Bahia; ministros do STF em Nova York; Gleisi Hoffmann (PT-PR) e Lindbergh Farias (PT-RJ) em um restaurante em Brasília; a atriz Regina Duarte em um teatro em São Paulo, entre outros.
A concentração de casos pode parecer fruto do acirramento de ânimos da eleição, mas a verdade é que o fenômeno já vinha acontecendo antes.
Para o professor do curso de gestão de políticas públicas da USP Pablo Ortellado, os episódios tiveram impulso a partir de 2014 e 2015, com as movimentações pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT).
Em sua visão, elas escancaram a polarização política no país e, com isso, a ideia de que o adversário é um inimigo a ser atacado.
Em 2015, diversos políticos petistas foram intimidados em momentos privados, como Guido Mantega no hospital Albert Einstein ao acompanhar a esposa em tratamento de câncer.
Mas a mira não se restringiu a um lado. No ano seguinte, a organização de esquerda Levante Popular da Juventude realizou a ação “escrache um golpista”, em que militantes foram às casas de uma série de políticos que endossaram a deposição de Dilma, como o então vice-presidente Michel Temer (MDB).
O mesmo grupo já havia promovido escrachos contra agentes acusados de colaboração com a ditadura. Procurado pela reportagem, o Levante não respondeu aos contatos.
O termo remete aos “escraches”, atos na Argentina organizados por filhos de desaparecidos ou presos políticos nos arredores das casas de agentes responsáveis por violações de direitos humanos durante a ditadura militar de 1976 a 1983.
A “punição social” é uma forma de justiça muito ruim, porque sumária, sem contraditório e sem mecanismos de defesa, diz Ortellado.
Para Debora Diniz, antropóloga e professora da UnB (Universidade de Brasília), a hostilização a pessoas não responsabilizadas em um regime ditatorial é diferente da intimidação em uma sociedade democrática.
Fora do país após uma série de ofensas e ameaças em razão de seu ativismo pela descriminalização do aborto, ela diz ver o escracho como uma “tática de desaparecimento”.
“O risco dessas práticas é que elas ativam efeitos de manada, cujo resultado é a restrição das aparições, principalmente para quem tem menos condição de se defender. O que está em disputa é o direito de existir sem intimidação.”
Um dos influenciadores que popularizou o questionamento de pessoas públicas com uma câmera na mão, o ex-deputado Arthur do Val, o Mamãe Falei, diz ser contra a hostilização e afirma que essa não era sua prática.
“Ir atrás de alguma figura pública e fazer um questionamento, ainda que incômodo, é bem-vindo, faz parte da democracia. Xingar é outra coisa. Mas uma lei para proibir pode gerar efeitos colaterais muito piores”, diz ele.
O estabelecimento de limites não é consenso nem entre os dois protagonistas do debate político no país.
Em abril, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defendeu que a militância sindical procurasse deputados e seus familiares na casa deles para pressionar a favor de propostas que interessam ao setor.
O presidente Jair Bolsonaro (PL), por sua vez, disse em diversas ocasiões que o petista não podia sair na rua no próprio país.
Depois de ter sido alvo de um bolsonarista, no último dia 18, no aeroporto do Cairo, a equipe do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) chegou a rascunhar um projeto para criar o crime de “assédio ideológico”.
O crime consistiria em “assediar alguém publicamente, de forma violenta ou humilhante, premido por inconformismo político, partidário ou ideológico”.
A proposta recebeu críticas pelo risco de cercear a liberdade de manifestação, e Randolfe acabou desistindo de protocolar o projeto. Procurado pela Folha, ele não respondeu.
O deputado Kim Kataguiri (União-SP), que foi empurrado por um manifestante durante um debate na Universidade Federal de São Paulo, no último dia 25, ironizou: “Se essa lei tivesse valendo […] ia uns 15 ‘estudantes’ em cana ou será que só valerá quando é ao contrário?”.
Já Rodrigo Maia assinou a polícia e a Justiça para enquadrar o casal que o hostilizou nos crimes de stalking, injúria e difamação.
A advogada Ariane Nery afirma que é preciso analisar as características particulares de cada situação para entender qual lei eventualmente pode ser aplicada a um caso ofensivo.
No episódio com Gilberto Gil, por exemplo, ela diz entender que a menção do torcedor à Lei Rouanet não configura crime, mas o xingamento dirigido no final do vídeo que circulou se enquadraria como injúria.
Outra saída poderia ser uma ação civil com pedido de indenização por danos morais, por exemplo.
Segundo Nery, que é integrante do Pleb (grupo de pesquisa sobre Liberdade de Expressão da PUC-Rio), o fato de a vítima da hostilização ser pessoa pública é entendido de maneiras diversas na Justiça.
Alguns juízes consideram que pessoas públicas estão mais sujeitas a crítica, outros, ao contrário, que são mais prejudicadas pelas ofensas por dependerem da imagem.
Nery diz ver com preocupação a criação de um novo tipo penal para evitar casos do tipo, bem como o enquadramento no recente crime de stalking.
“Toda vez que uma lei é criada em um momento de clamor popular, resulta em uma norma sem consistência, que, além de não resolver o problema, produz distorções.”
O advogado Victor Leahy, também membro do Pleb, diz ver com ressalvas novas propostas para coibir essa prática.
“Há quem defenda, hoje, uma necessidade de maior proteção à honra e reputação dessas figuras públicas. Argumenta-se que, com o avanço da tecnologia e dos meios de comunicação, os ataques são mais frequentes e coordenados”, diz.
Mas ele pontua que, embora haja discursos que não são protegidos pela Constituição (como calúnias, ameaças, desacato e incitação à violência, por exemplo), é preciso “ter cautela ao definir os casos em que a resposta estatal será a mais apropriada”, pois há risco de legitimar a censura e de que novas leis sejam aplicadas de forma arbitrária.
Entenda quando a abordagem pode configurar crime
Quem ofende personalidades públicas por razões políticas pode ser responsabilizado na Justiça?
Sim, mas depende do conteúdo. Críticas e opiniões desfavoráveis são protegidas pela liberdade de expressão, desde que não se enquadrem em algum crime previsto no Código Penal ou se entenda que justifiquem indenização por dano moral.
Em quais crimes pode ser enquadrado o cidadão que ataca verbalmente um político?
Calúnia: imputar falsamente a alguém fato definido como crime;
Difamação: imputar a alguém fato ofensivo à sua reputação;
Injúria: ofender a dignidade ou o decoro de alguém.
Quais são os agravantes para esses crimes?
Se houver violência (o que acrescentaria também a pena da violência); se a injúria usar a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência; se dirigida a funcionário público no exercício da função, ao presidente do Brasil ou de outro país ou aos presidentes do STF, Senado e Câmara; na presença de várias pessoas ou por meio que facilite a divulgação, como vídeo; se atingir criança, adolescente, pessoa com deficiência ou com 60 anos ou mais; se cometido ou divulgado em redes sociais
E se há troca de ofensas?
No caso de injúria, o Código Penal prevê que o juiz pode deixar de aplicar a pena se “o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria” ou retrucou com outra injúria
O autor da ofensa pode ser condenado a pagar indenização?
Sim. A Constituição diz que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas” e prevê indenização por dano moral ou à imagem em caso de violação. Caberá à Justiça avaliar se isso ocorreu, e muitas vezes os critérios são subjetivos.
E quem divulga ofensa feita por outro está sujeito a punição?
Quem divulga calúnia, mesmo sabendo ser falsa, está sujeito à mesma pena de quem a comete.
O que é o crime de stalking? Ele se aplica a esses casos?
Desde 2021, o Código Penal prevê pena de 6 meses a 2 anos de reclusão a quem “perseguir alguém reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”. Para enquadrar alguém no crime, é preciso provar o caráter reiterado da conduta. Há discussão se a divulgação na internet de um episódio pontual seria suficiente para essa caracterização.
Angela Pinho e Carolina Linhares, Folhapress