Fraude

Li e aceito, o curto caminho para os golpes na internet e o que fazer a respeito

Nesta edição do programa Papo de Futuro, a jornalista Beth Veloso dá dicas sobre como evitar golpes na internet.

Na semana passada a gente falou sobre a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD (Lei nº 13.709/2018), e como ainda falta muito para gente conseguir mudar o estado das coisas na Internet. E o que é o “estado das coisas”?

A Lei nasceu a partir de uma violação de direitos. Muita informação vazou para empresas que usaram essa informação, que chamamos de dados pessoais, para fins terceiros. Tudo isso parece muito hermético, mas o que a gente quer dizer é: tudo que você posta na internet, pode cair nas mãos de pessoas que vão aplicar muitos golpes, como pedir dinheiro para a sua mãe.

Pois isso aconteceu comigo exatamente na semana passada. Se fizeram passar por meu filho, utilizando a mesma foto publicada no perfil do Facebook e me pediram dinheiro num português perfeito! Como o golpista conseguiu o meu telefone, como ele sabia quem eu era, eu não faça a menor ideia. É assustador! Nem sei como checar essa história, mas isso se deve, em parte, pela liberalidade das plataformas digitais com o uso dos nossos dados pessoais.

A melhor explicação que tive é: isso é vazamento de dados. E por quê ninguém faz nada quando isso acontece, Beth?

Pois é, pois deveria fazer. Isso porque a nossa relação com a rede social vai muito além de uma parceria. E pouca gente sabe disso. Nós somos clientes das plataformas. A relação é de consumo, prevista no Código de Defesa do Consumidor. Consumimos o serviço que elas prestam, e tudo isso está escrito na letra pequena dos contratos, que ninguém lê. O ouvinte que disser que não assinou nada, está correto? Em parte, pelo menos, sim, está correto. Ao clicar nos quadradinhos, inclusive o de “não sou robô”, eu, você, e todo mundo está dando amém para tudo, tudo mesmo, que consta nos termos de uso das plataformas.

Eu queria centrar esse comentário numa pesquisa feita pelo Internet Lab[1], é uma ong que trata de internet e sociedade. O estudo me impressionou bastante, negativamente, é claro. O título é “li e aceito”: violações a direitos fundamentais nos termos de uso das plataformas digitais. O artigo é de fevereiro de 2020, e está absolutamente atual.

Em primeiro lugar, é preciso dizer: aquilo é um contrato. E se há algo ali que seja muito desfavorável a você, a Justiça vai te proteger, não se preocupe. E na verdade, sim, há coisas ali que são inaceitáveis do ponto de vista dos direitos humanos. O primeiro é o fato de eu não ter escolha sobre a gestão da informação. Ou seja, o modelo é: ou é tudo, ou nada. E isso não é democrático. Pior ainda são os contratos que tem uma forma de aceitação presumida, ou seja, você nem sequer precisa clicar na caixinha. Só de entrar no site você já aceita todo tipo de tratamento dos dados que estão sendo utilizados.

Embora o artigo 5º, XII, da Lei Geral de Proteção de Dados define o consentimento como a “manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade específica”, não é assim que funciona na vida real na internet. É que os contratos, ou termos de uso, são feitos para você desistir deles. Um estudo da Universidade Carnegie Mellon, nos Estados Unidos, de 2008, mostrou que um usuário precisaria reservar oito horas diárias e 76 dias para ler somente as políticas de privacidade de uma média de 1.462 páginas visitadas em um ano (McDonald & Cranor, 2008).

Essa dificuldade toda tem um objetivo. Os termos são globais, porque as plataformas são globais. Imagina ter que explicar tudo para cada um dos mais de 200 milhões de usuários ativos das redes de mensageria, só no Brasil. Os contratos precisam ser amplos o bastante, inespecíficos o bastante e confusos o bastante para que você desista de ir para a Justiça, caso algo dê errado, por exemplo, quando a plataforma remover o seu conteúdo ou eliminar a sua conta sem lhe dar explicações, e isso gere a ti perdas financeiras e emocionais difíceis de reparar.

Existe uma expressão que retrata bem o que é a internet sob as regras das plataformas: “o que não está na rede, não está no mundo”. As pessoas criaram uma dependência psicológica e emocional e, sobretudo, financeira com a rede sociais, e, sem dúvida, hoje muita gente depende da rede social para comer.

O chocante é que você aposta seus negócios, o seu tempo e a sua carreira numa empresa que compartilha seus dados pessoais com outras empresas do grupo, comercializa seus dados pessoais para vender anúncios, e não tem nenhuma responsabilidade com a Justiça por promover Fake News ou conteúdo ilícito, ilegal, ou preocupante, para gerar engajamento e vender mais anúncios, pois que assim diz o Marco Civil da Internet. A assimetria de poder é tão grande, que uma empresa inglesa, para fazer uma brincadeira no dia 01 de abril, incluiu uma cláusula nos seus Termos de Uso estabelecendo a transferência da alma do usuário para a empresa. E, segundo o canal Fox News, muita gente aceitou entregar sua alma para a empresa, pois deixou de clicar na opção: “cancelar transferência de alma”.

Sim, a internet está vampirizando muita gente, consumindo até a alma de quem entrega tudo sem se informar dos riscos de expor toda a sua vida numa rede mundial de computadores que analisa seus dados, processa, armazena e não te presta contas de nada. A título de exemplo, a política de privacidade do Google reconhece que a empresa coleta os conteúdos que o usuário cria, faz upload e recebe de outras pessoas, incluindo “e-mails enviados e recebidos, fotos e vídeos salvos, documentos e planilhas criados e comentários feitos em vídeos do YouTube”. E isso inclui a sua senha do banco, se estiver no seu email!

A sorte é que, mesmo que os termos de uso digam que não, o Brasil é a arena correta para brigar na Justiça contra os abusos cometidos por plataformas sociais na gestão da sua conta, do seu perfil, site ou blog. Pode ser que você tenha que criar outro perfil para poder conversar com essa parceira comercial, mas isso faz parte do rol de dificuldades, a vida digital é mais complexa.

É o preço a se pagar para ter acesso aos serviços dessas plataformas, considerando que, apenas teoricamente, elas não te cobram nada, a não ser transformar em cifras todo o conteúdo que você posta. O meu conselho? 1) poste o estritamente necessário; 2) denuncie e não publique conteúdo que viola direitos, como pornografia, racismo, obsceno, discriminatório, desinformação, incitação ao ódio; 3) se você for influencer dos bons, comece já uma campanha pelo direito de escolha dos termos de uso das plataformas, com cláusulas que possam ser ajustáveis ao consumidor. Um bom título da campanha seria: “Li e, isso aqui, eu não aceito”.

Rádio Câmara