Primeiro Comando da Capital, PCC, evoluiu ao ponto de já poder ser considerado uma máfia. Criado em 1993 por oito presidiários em Taubaté, interior de São Paulo, o grupo já atende a todos os critérios do artigo 416-bis do Código Penal da Itália, um dos países que mais penou com essas organizações. O PCC exerce controle territorial e subjuga as pessoas por meio de uma “lei do silêncio”. Com base nisso, faz o que descreve o código penal italiano: aproveita-se para “cometer crimes, adquirir a administração ou controle de maneira direta ou indireta de atividades econômicas, concessões, autorizações, licitações e serviços públicos, ou obter lucros ou vantagens injustas para si ou para terceiros ou para impedir ou dificultar o livre exercício do voto ou obter votos para si ou para outros por ocasião das eleições”. Nas últimas duas semanas, duas operações do Ministério Público de São Paulo demonstraram esta nova realidade: o PCC já se consolidou como um parasita do Estado brasileiro, financiando candidatos e se beneficiando com contratos públicos. É um caminho perigoso, que ao final poderá tornar o Estado totalmente inoperante, com a sociedade à mercê do crime.
Um dos que mais tem alertado a sociedade sobre o vampirismo do PCC e suas consequências é o promotor do Ministério Público de São Paulo Lincoln Gakiya (assista à entrevista com ele nesta edição da Crusoé). Integrante do Grupo de Atuação Especial ao Crime Organizado do MP-SP, ele estuda o PCC há duas décadas e está jurado de morte — só se movimenta com pesada escolta de policiais militares. No início de abril, Gakiya apresentou os resultados da operação Fim de Linha, que resultou na intervenção municipal de duas empresas de ônibus, a Transwolff e a UPBus, cujos donos e sócios eram membros do PCC.
O transporte urbano foi uma das principais vias para o PCC entrar no Estado. Nas décadas de 1980 e 1990, a informalidade no setor cresceu, com vans irregulares transportando a população em bairros periféricos de São Paulo. Pequenos empresários surgiram, e muitos criminosos presos compravam peruas como uma maneira de ajudar a sustentar a família. Cooperativas foram organizadas. Nesse primeiro momento, o PCC se sustentava principalmente com o dinheiro de seus associados. Isso mudou com a ascensão de Marcos Willians Camacho, o Marcola, no início dos anos 2000. Com ele, o grupo passou a se financiar principalmente com o tráfico de drogas. Entre 2008 e 2010, o PCC fez negociações para trazer maconha do Paraguai e cocaína da Bolívia, internacionalizando-se.
O dinheiro das drogas obrigou a organização a lavar o dinheiro, o que levou o PCC a atuar cada vez mais como uma grande empresa. Ao mesmo tempo, uma mudança no sistema de transporte da capital paulista, em 2013, substituiu as vans por ônibus, o que forçou a uma mudança de estratégia. Foi aí que membros do PCC criaram empresas para ganhar licitações públicas. Um dos casos mais emblemáticos é o do perueiro Luiz Carlos Efigênio Pacheco, o Pandora, que integrava uma cooperativa de motoristas e depois criou a Transwolff. Pandora foi um dos presos na operação Fim de Linha. Na outra empresa, a UPBus, todos os sócios eram membros do PCC.
Ao contar com dinheiro do crime, essas empresas competem de maneira desleal no mercado privado. Além disso, ao aproveitar as oportunidades que aparecem no setor público, elas podem lucrar ainda mais e ter benefícios indiretos. “Como toda máfia, o PCC, se tem oportunidade, gruda no Estado e passa a corrompê-lo e a sugá-lo. De quebra, as máfias ainda enfraquecem a capacidade de o Estado implementar as leis. Toda máfia é parasitária. Todo Estado é vulnerável”, diz Wálter Maierovitch, que foi desembargador, fundou o Instituto Brasileiro Giovanni Falcone de Ciências Criminais e é autor do livro Máfia, poder e antimáfia.
Uma semana após a operação Fim de Linha, o Ministério Público de São Paulo apresentou o resultado de outra investigação, a Munditia, que prendeu treze pessoas, incluindo três vereadores, acusados de ligação com esse grupo criminoso. Ainda que não tenham projeção nacional, esses vereadores têm enorme influência no nível municipal, pois podem determinar o sucesso ou a falência de empresas de coleta de lixo, de serviços terceirizados e de transporte público. “O poder municipal, acima de tudo, é responsável por inúmeras regulações, como as que normatizam a venda de terrenos ou as autorizações para construções. Os vínculos desses políticos nas cidades podem ajudar os grupos a atuar nesses mercados regulados”, diz Joana Monteiro, que avalia o impacto das estratégias policiais e o crime organizado e é professora na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro.
Muitos desses políticos cresceram e ganharam autoridade em áreas controladas pelo PCC, o que implica que eles muitas vezes já tinham algum vínculo com o grupo. Outros são cooptados no meio do caminho. O preço a se pagar por eles é uma baixo, considerando que o PCC fatura mais de 1 bilhão de dólares por ano. Os três vereadores presos na operação Munditia mostram isso. Ricardo Queixão (PSDB), vereador de Cubatão, gastou apenas 8 mil reais na campanha em 2020, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral. Ajudado pelo quociente partidário, o tucano precisou de apenas 1.031 votos, ou 1,55% dos eleitores da cidade de 131 habitantes, para se tornar um representante da organização criminosa por ali. Em Santa Isabel, município de 58 mil habitantes que fica a 50 km de São Paulo, o ex-presidente da Câmara, Luiz Carlos Alves Dias (MDB), elegeu-se após declarar receitas de campanha em 5 mil reais — excluindo-se as prestações de serviços, a única entrada em dinheiro em sua campanha totaliza meros 2.290 reais. Ele teve 539 votos (o vereador mais votado teve 680 votos). O terceiro vereador preso, Flávio Batista (Podemos), da cidade de Ferraz de Vasconcelos, relatou 57,6 mil reais em despesas. Ele teve como principais doadores empresários de pequenas empresas ligadas à prestação de serviços públicos, como limpeza urbana e asfaltamento.
O principal risco de permitir que uma máfia sugue o Estado é inviabilizar qualquer reação ao crime, gerando uma sociedade amedrontada e inapetente. Um exemplo das consequências desse fenômeno foi a revelação, em março, de que o delegado Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil do Rio, não apenas arquitetou a execução da vereadora Marielle Franco, do Psol, como atrapalhou as investigações. A Delegacia de Homicídios, chefiada por Barbosa, recebia, segundo um depoimento, entre 60 mil e 80 mil reais das milícias.
Como não têm uma atuação nacional, as milícias cariocas ainda não chegam ao ponto de poderem ser consideradas como máfias. Mas a investigação da morte de Marielle Franco mostra outra característica, ainda mais nociva. No Rio de Janeiro, o parasitismo é ainda mais explícito, uma vez que muitos policiais, vereadores, deputados estaduais e federais têm relação com esses grupos criminosos. É uma relação carnal, que se torna ainda mais deletéria por causa da elevada corrupção na polícia carioca. Assim, mesmo quando o Ministério Público do Rio de Janeiro realiza um bom trabalho de investigação, os promotores não contam com a devida proteção e as decisões da Justiça não são devidamente implementadas.
“Há um fenômeno muito carioca que é a corrupção policial. Isso faz muita diferença no combate ao crime no Rio de Janeiro. A polícia de São Paulo não tem esse tipo de contaminação”, diz Leandro Piquet, que estuda o narcotráfico e é coordenador da Escola de Segurança Multidimensional, do Instituto de Relações Internacionais da USP. “Em São Paulo, o Gaeco foi se consolidando e hoje tem uma parceria muito boa com a Polícia Militar do estado, para fazer escutas e cumprir mandatos. Esse modelo produziu grandes denúncias. Para completar, os promotores têm muito valor. São produtivos e destemidos.”
O sucesso das duas últimas operações em São Paulo contra o PCC também se deve ao cruzamento de informações entre a Receita Federal, o Ministério Público estadual, a Polícia Civil, a Polícia Militar e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, Cade. Caso esse trabalho estivesse sendo feito há alguns anos, seria possível, por exemplo, verificar se os sócios de uma empresa são membros do PCC e impedir sua participação em licitações públicas. Parece uma tarefa básica — e é —, mas que surpreendentemente não estava sendo realizada. “É preciso haver mais compartilhamento de dados e lembrar que as estruturas do crime organizado são nacionais. Não dá para deixar isso só a cargo dos estados”, diz Joana Monteiro, da FGV do Rio. “Os cruzamentos de dados poderiam nos levar muito longe para impedir esse tipo de penetração das máfias no Estado.”