Raio-X inédito da utilização de vacinas no país mostra que o governo federal deixou vencer 58,7 milhões de imunizantes desde 2023, após Luiz Inácio Lula da Silva assumir a Presidência. O número supera em 22% a quantidade desperdiçada nos quatro anos em que o ex-presidente Jair Bolsonaro esteve no poder, quando 48,2 milhões de imunizantes foram descartados por não serem usados no prazo de validade. Especialistas citam que a alta pode ser resultado de erros na gestão, como compra de produtos perto do vencimento, até ao crescimento de movimentos antivacina. O Ministério da Saúde atribuiu parte das perdas a doses recebidas da administração passada.
Dados do Ministério da Saúde obtidos pelo GLOBO por meio da Lei de Acesso de Informação (LAI) apontam que o valor perdido com as vacinas inutilizadas em 2023 e ao longo deste ano, até a segunda-feira passada, foi de R$ 1,75 bilhão, um registro desde os quatro anos do segundo mandato de Lula, quando o prejuízo acumulado foi de R$ 1,96 bilhão. A avaliação no lixo nos últimos dois anos seria suficiente, por exemplo, para adquirir 6 mil ambulâncias do padrão utilizado pelo Samu (R$ 276 mil cada unidade) ou 101 milhões de canetas de insulina, que ficaram em falta em postos de saúde do país no primeiro semestre.
Para evitar novos desperdícios, a Saúde informou ter promovido inovações no processo de distribuição dos imunizantes, “como a entrega parcelada por parte do laboratório contratado e possibilidade de troca pela versão mais atual aprovada pela Anvisa”.
A maior parte das perdas de vacinas ocorreram em 2023, com 39,8 milhões inutilizadas, somando prejuízo de R$ 1,17 bilhão, enquanto de janeiro deste ano até agora foram mais 18,8 milhões sem uso, o que já custou R$ 560,6 milhões aos cofres públicos.
‘Estoques pastores’
Procurado, o Ministério da Saúde afirmou ter encontrado imunizantes contra a Covid-19 já com prazo expirado ao assumir. “As vacinas vencidas em 2023 foram reflexo de estoques herdados da gestão anterior e campanhas sistemáticas de desinformação que geram desconfiança sobre a eficácia e segurança do imunizante, impactando na adesão da população”, afirma a pasta, em nota.
Além do número maior de vacinas perdidas, proporcionalmente a gestão atual desperdiçou mais doses do que utilizou. Boa parte das 58 milhões de ampolas de vacinas perdidas tinham mais de uma dose de imunizante. No total, foram 217 milhões de aplicações desde o ano passado. Ao mesmo tempo, outros 385 milhões tiveram que ser descartados, 176% a mais.
Já no governo Bolsonaro, que introduziu um discurso negacionista em relação às vacinas e resistiu à compra de imunizantes no início da pandemia, essa proporção foi de 150%, com 575 milhões de doses vencidas, ante 384 milhões usadas.
Cada unidade de vacina pode contemplar mais de uma dose, a depender da indicação do fabricante. Um frasco do imunizante contra Covid-19 da Pfizer, por exemplo, possui 10 doses na sua versão pediátrica e seis na adulta.
Covid no topo
As vacinas contra a Covid-19 responderam por três de cada quatro das que foram descartadas neste. Enquanto isso, 80,62% da população não tomou a segunda dose de reforço contra a doença.
Presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e colunista do GLOBO, a médica Margareth Dalcolmo aponta que lotes recebidos perto do vencimento e a baixa procura da população pelas vacinas são fatores que levaram às perdas dos imunizantes.
— Título uma baixa adesão, inclusive de Covid-19, que foi um desastre. Esse fluxo de vacina é muito lento. A logística é muito complexa — afirmou Dalcolmo, escolhido pelo governo Lula como embaixador da imunização no país.
O desperdício, porém, não se restringe às vacinas contra a Covid. Outros imunizantes também foram descartados, como o DTP (16,5% do total fora da validade) — contra difteria, tétano e coqueluche — febre amarela (3,5%), e meningocócica (1,8%).
O desperdício ocorre apesar do aumento na cobertura vacinal dessas doenças. A da DTP, por exemplo, passou de 64,4% da população imunizada em 2022 para 87,5% em 2024. A da febre amarela foi de 60,6% para 75,4%. E da meningocócica, de 75,3% para 95,3%.
Epidemiologista e ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Ministério da Saúde, Carla Domingues diz ser preciso ter mais busca ativa de crianças e outros públicos alvos.
— Ficar esperando crianças passivamente vai ter perda de vacina. A cobertura vacinal melhorou, mas a maioria ainda não atingiu a meta de 95% — disse Domingues.
Coordenador da Sociedade Brasileira de Infectologia, o professor Alexandre Naime avalia que o governo investiu pouco em campanhas pró-imunização. Ele também aponta problemas na gestão do sistema de saúde, o que inclui governo federal, estados e municípios.
— A gestão e o planejamento do ministério estão tendo muita falha, estão muito mal articulados. E não era assim no passado. São necessárias muitas mudanças para que o dinheiro do contribuinte não seja jogado fora — disse ele.
Ministro da Saúde de 2007 a 2010, no segundo mandato de Lula, o pesquisador da Fiocruz José Gomes Temporão avalia que o próprio sucesso do PNI pode explicar a redução da procura por vacinas. Segundo ele, com o sumiço de muitas doenças a partir de 2016, como sarampo e tétano, pais podem ter sobrado de buscar postos de saúde para vacinar seus filhos. Somado a isso, conforme o ex-ministro, houve uma redução de gastos com publicidade e estratégias de comunicação para convencer a população a se vacinar.
— Essa questão (perda de vacina por prazo de validade) nunca foi um problema importante de saúde pública. O PNI manteve durante décadas uma altíssima cobertura vacinal. Então, o risco de perda é muito pequeno — disse ele.
O registro de prejuízo em 2008, durante a gestão de Temporão na pasta, é explicado pela produção de imunizantes contra febre amarela. No ano anterior houve um surto de doença no país, o que levou o governo a adquirir um número alto do produto, a um custo elevado. Epidemiologistas afirmam que há uma recomendação para que o estoque de vacina contra febre amarela seja sempre grande.
Fonte: O Gobo