Usando pintura de guerreira no corpo, Ngrenhkarati Xikrin, 44, deslocou-se da aldeia Potikrô, no sudeste do Pará, para Manaus, no Amazonas, no final de outubro. Rota sinalizada como “impossível de ser calculada” no Google Maps.
Um líder indígena contou “aos brancos”, em um evento sobre negócios amazônicos, como as mulheres de sua aldeia, na floresta amazônica, se organizaram para sobreviver depois da instalação da usina Belo Monte no rio Xingu. A hidrelétrica impactou o modo de vida de mil pessoas que, como ela, vivem na Terra Indígena Trincheira Bacajá.
“Agora nosso rio é quente, não presta”, diz a responsável pelo comitê das mulheres Xikrin da Abex (Associação Bebô Xikrin do Bacajá), que precisa fazer compras no mercado se quiser comer carne.
Uma das saídas para gerar renda e poder ir às compras, “como no mundo dos brancos”, foi aprender a falar português. A outra foi desenvolver uma linha de produtos da floresta —castanhas, artesanato, óleo de babaçu e tecidos.
Ngrenhkarati conversou com a Folha durante o Fiinsa ( Festival de Investimento de Impacto e Negócios Sustentáveis da Amazônia ), realizado pelo Idesam ( Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia ) e Impact Hub, que a convidaram para uma mesa sobre empreendimentos da floresta e negócios comunidades.
“Nós éramos crianças felizes da vida. Tinha fartura na natureza. A gente comia e sobrava. Depois tomávamos banho no rio e nossos pais brigavam: olha, o peixe grande vai pegar vocês.
Hoje a gente atravessa o rio andando. Secou tudo, acabaram os peixes. Quem está de fora não vê nada, não.
Foi por causa de Belo Monte, que ficou em cima do rio Xingu, e chupou a água todinha que vinha para o rio Bacajá. Agora nosso rio é quente, não presta.
Os homens chegam em casa sem caça, levam o dia todo para pegar uma piabinha. A gente tem que comprar carne no mercado e tirar água do poço.
As mulheres da aldeia cuidam da casa, dos filhos, dos mais velhos, vão para a roça, vão atrás de coisas para vender. Trabalhamos muito. É sofrido.
Eles me colocaram como liderança para lutar por eles. Falar o que elas sentem e o que está apostando na terra isolada para o mundo inteiro. Por isso aprendi a língua do branco. Eu não tive estudo meu para aprender a falar que nem vocês, aprendi à força, língua é mẽbengôkre.
Os índios estão quietos no lugar deles. A gente não sai daqui para mexer na cidade do branco. Mas eles vêm. De vez em quando, tem que dar uma olhada, porque os invasores vêm para dentro [da reserva indígena] criando fazenda, furando terra para achar ouro.
A gente pede ajuda para a Funai, para o ICMBio, mas às vezes não faz nada. Então os próprios indígenas vão lá e tiram os invasores. Logo eles voltam. É muita ameaça.
Antes de Belo Monte, todo o mundo navegou até Altamira. Negociava suas coisas aqui e acolá. Tinha festa em todo canto. Hoje é dividido, a gente não chega mais de barco nas outras aldeias.
Nossos antigos progrediram na Associação Bebô Xikrin do Bacajá. Foi para defender nossos direitos, o território indígena e conseguir recursos para sobreviver.
Então a gente usa o conhecimento tradicional do nosso povo para produzir e vender castanha, óleo de coco babaçu, farinha, urucum. E fazemos artesanato, pintura de tecidos, vestidos, brincos, bolsas e cordões.
A associação cria os projetos, faz parcerias, consegue tecidos para as pessoas trabalharem. Só que o branco diz que precisa melhorar a qualidade do nosso produto para ganhar mais.
Então a gente precisa de investimento para isso, e também para capacitar as mulheres e pagar o frete da aldeia até a cidade. Sem o rio, são 5h de caminhonete, na estrada ruim, até Altamira.
Tenho sete filhos e dez netos. A preocupação é grande. Eu vou para a cidade grande, uso pintura de guerra, dou o recado. Mas a floresta continua sofrendo como nosso povo Xikrin. preciso de ajuda.”
Fonte: Folha de São Paulo