O longo decreto que muda a estrutura do Ministério da Saúde, publicado no DOU de segunda-feira, vai aos poucos sendo analisado, e certamente ainda vamos ouvir falar muito sobre ele. Segundo o ministério, o documento gera “um sistema de saúde mais forte e organizado“. Será? Pinçamos do Brasil Real Oficial alguns pontos importantes.
Começando bem: se a articulação do poder público com os hospitais filantrópicos já merecia nossa atenção, agora a coisa complicou de vez. O decreto cria o Departamento de Certificação e Articulação com os Hospitais Filantrópicos e Privados. Ou seja, Instituições que tenham explicitamente fins lucrativos vão poder aproveitar os contratos.
Tele, tele, tele: A digitalização aparece com muita força no decreto. Um item de destaque é o sempre apontado – e prometido por Mandetta – prontuário eletrônico. Mas o que preocupa é a criação do Departamento de Saúde Digital, que vai liderar a implementação de uma Política Nacional de Saúde Digital e Telessaúde no SUS. Segundo o texto, ele vai “estimular as atividades de saúde digital, incluídos a teleconsultoria, o telediagnóstico, a tele-educação, entre outras, como estratégias de apoio assistencial no âmbito do SUS”. Já falamos muito sobre telessaúde este ano, quando o CFM emitiu uma norma (mais tarde revogada) regulamentando a prática de uma maneira que fragilizava os atendimentos nos lugares mais remotos e com baixo acesso à assistência.
Sem controle: Como sinalizamos na terça, a participação social foi para escanteio. Além da extinção da secretaria que cuida da gestão participativa, sumiu também a previsão de incentivo à “articulação com movimentos sociais, organizações não governamentais e instituições afins, para fomento à participação popular e social na formulação, no acompanhamento e na avaliação das ações programáticas estratégicas”.
Indígenas: há a tão anunciada (e criticada) previsão de ‘integração’ do atendimento dessa população ao SUS, mas nada muito definido.
PROGRAMA DE AIDS PODE ENFRAQUECER
Ainda sobre o decreto, um aspecto em especial já recebeu muitas críticas: o rebaixamento do programa de tratamento de HIV/Aids. No documento, o atual Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais fica transformado em uma coordenação. E, sob a sua responsabilidade, estarão duas outras doenças que não estão relacionadas ao contágio sexual – tuberculose e hanseníase.
ONGs, associações e especialistas da área foram ouvidos pelo Estadão. Há grande temor de que nossa mundialmente famosa política de combate a Aids se enfraqueça, com o tema diluído entre outras demandas. Ainda por cima, não se sabe se haverá incremento no orçamento para desenvolver ações para duas novas doenças. Aqui no Outra Saúde nos perguntamos também que impacto isso pode ter para a tuberculose e a hanseníase, doenças simples de tratar mas que têm enorme prevalência no Brasil, atingindo principalmente populações mais pobres. O caso da hanseníase é emblemático: somos o segundo país onde há maior registro de novos casos, atrás apenas da Índia.
O ministério afirmou em nota que não vai haver prejuízo na política de Aids e “a intenção é trabalhar com as doenças mais comuns nas populações com maior vulnerabilidade e com os mesmos condicionantes sociais”. A inclusão da tuberculose na jogada se deve, segundo a pasta, ao fato de que pessoas com HIV têm maior risco de desenvolver essa doença e de morrer em decorrência dela; além disso, é comum que o diagnóstico de infecção pelo HIV seja feito durante a investigação sobre tuberculose. Sobre a questão de aumentar o financiamento da área, não disse nada.
Seis coletivos e associações de ONGs emitiram nota conjunta sobre a mudança. Entre as críticas, o fato de que não foram consultados ou comunicados sobre isso, mesmo tendo se reunido com o ministério há um mês.
RESULTADO DAS RUAS?
O governo recuou e vai reverter, em parte, os cortes na educação e no meio ambiente. Segundo o Valor, ficam cancelados os bloqueios de maio, mas os de março seguem valendo. Quer dizer: a educação continua com um corte de R$ 5,8 bilhões e o meio ambiente, de R$ 187,4 milhões. O anúncio foi feito ontem por Waldery Rodrigues, mas ele negou que os protestos nas ruas tenham algo a ver com a decisão.
De todo modo, lembramos que, embora a adesão ao ato do dia 15 tenha crescido com a história dos cortes, eles já haviam sido convocados antes. A principal questão era a reforma da Previdência. E essa discussão segue firme. Ontem, o presidente da Câmara Rodrigo Maia defendeu que o regime de capitalização seja aprovado agora, mas regulamentado e implementado só “em outro momento, quando Brasil voltar a crescer”. Ele confirmou que dois dos pontos da proposta mais rechaçados pela população – as mudanças no Benefício de Prestação Continuada e nas aposentadorias rurais – já estão fora do texto em discussão. E disse que vai ser “difícil” manter servidores estaduais na reforma, mas que “solitariamente” defende que sejam mantidos.
Enquanto isso, Jair Bolsonaro prometeu a parlamentares do Nordeste um projeto que vai arrecadar mais do que essa proposta de reforma. “Um projeto que, com todo o respeito ao Paulo Guedes, a previsão de nós termos dinheiro em caixa é maior do que a reforma da Previdência em dez anos. Com toda a certeza será aprovado aqui por unanimidade nas duas Casas, se Deus quiser”, disse, segundo o Estadão. É claro que não deu detalhe algum.
E a inteligência das Forças Armadas avalia que os atos pró-Bolsonaroconvocados para o domingo não contribuem para a pacificação do país. E que, se o desemprego continuar alto e a sensação de país parado persistir, há risco de radicalizações (mais?).
NÚMEROS E BUSCAS
Saíram os resultados da Pnad Contínua, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Desde 2016, cresceu em 3 milhões o número de casas onde se usa lenha ou carvão para cozinhar. Foi uma expansão de 27%. Hoje, um quinto das famílias são obrigadas a fazer comida dessa forma, o que é fruto da combinação entre o desemprego e o gás caro. Embora o maior aumento no uso de lenha e carvão tenha sido no Sudeste (60%), é no Nordeste que essas famílias se concentram. Nessa região, estão 35% dos lares que usam esses combustíveis, ou que significa 4,8 milhões de famílias.
A pesquisa também mostrou que os maiores problemas das moradias continuam sendo a falta de saneamento básico e de destinação adequada para o lixo. Há 72,4 milhões de brasileiros sem rede de esgoto.
Dialogando com a matéria sobre isso – e com as discussões sobre a MP 869, que força a privatização da área –, o Estadão traz um artigo do advogado Rubens Naves. Ele fala da Inglaterra, primeiro país a privatizar todo o setor de saneamento básico: “O cenário atual do que os ingleses chamam de ‘indústria da água’ exibe amplo e contínuo descumprimento de metas de aumento de eficiência e redução de desperdício, trajetória ambiental insustentável, enormes lucros para altos executivos e grandes acionistas e tarifas pagas pelo cidadão comum reajustadas cerca de 40% acima da inflação em relação aos preços cobrados desde a privatização”. O resultado é que a maioria dos ingleses quer a reestatização dos serviços. Naves menciona ainda o site remunicipalisation.org, com casos de municípios do mundo todo que, depois de privatizar esses serviços, voltaram a estatizá-los. As duas constatações de Naves são as seguintes: o Brasil precisa ver como prioridade a expansão do saneamento, mas evitando reproduzir modelos que já se mostraram falidos no resto do globo. Como modelo de sucesso, ele cita do da Sabesp, empresa de economia mista de SP.
AUMENTA DESISTÊNCIA NO MAIS MÉDICOS
No início de abril já era espantoso o número de profissionais que haviam se desligado do Mais Médicos – 1.052. Pois agora cedo o G1 divulgou uma atualização. e já são 1.325 as desistências, o que representa 19% de todas as vagas preenchidas. Na semana que vem a pasta vai receber inscrições para seu edital mais recente, que foi lançado no dia 13 apesar da promessa que o governo havia feito de encerrar o modelo atual e apresentar uma proposta de reformulação até o mês passado. O ministério segue afirmando que vai divulgar “em breve” um novo programa para “ampliar a assistência na Atenção Primária”
SOBRE O STF
Dos julgamentos em pauta ontem, seguimos sem resposta sobre o fim da redução dos recursos federais na saúde. A decisão que houve foi sobre ofornecimento de remédios de alto custo que não tenham registro na Anvisa. E o plenário julgou que o poder público não tem a obrigação de custeá-los. Mas, em casos excepcionais, sim: quando há muita demora da agência na avaliação do produto, quando já há registro em agências reguladoras de outros países e quando não há outra alternativa de tratamento, por exemplo. Só votaram contra os ministros Marco Aurélio e Dias Toffoli.