“A tortura é algo extremamente complexo. Eu acho que todo mundo que passou pela prisão sempre vai ter essa marca. Eu não gosto de ver filme, por exemplo, que passa tortura. Não é que eu não goste. Eu não vejo. É pior, né? Eu não quero ver. A tortura é algo que mexe com aquilo que é mais profundo e que constitui você”. A declaração da ex-presidenta Dilma Rousseff, 50 anos após o momento em que foi presa pela ditadura militar, em 16 de janeiro de 1970, traz pulsante um processo que marcou a história brasileira e que ainda encontra ecos na atualidade. “A dor é sempre uma ameaça de morte, quando se trata de tortura.”
Presa em meio ao aumento da repressão, da violência e da cassação de direitos políticos por parte da ditadura militar, Dilma se localiza nesse período: “Eu sou presa no processo de endurecimento do regime militar”.
Sobre resistência e superação, para Dilma, a chave é não guardar ódio. “Eu acho que não tem como passar a vida tendo mágoa disso, isso é um absurdo. Porque não é possível ter ódio. Ódio é dar a quem fez isso contigo um poder que não pode ter. Você tem de olhá-los como eles são: banais. São banais.”
Nestas cinco décadas transcorridas desde esse momento, a militante Dilma já construiu uma trajetória política diversa na vida política e institucional do país, chegando até o mais alto cargo, o de presidenta da República.
Filha de pai búlgaro e mãe brasileira, Dilma Vana Rousseff nasceu em 14 de dezembro de 1947, em Belo Horizonte (MG), sendo a segunda, de três filhos do casal. Em 1964, ingressou no Colégio Estadual Central de Belo Horizonte, atual Escola Estadual Governador Milton Campos, onde teve, já nos primeiros anos da ditadura militar, os primeiros contatos com o movimento estudantil e a militância política.
A jovem Dilma Rousseff ingressou na organização Política Operária (Polop) e, ao defender a luta armada contra a ditadura, se alinhou ao Comando de Libertação Nacional (Colina). Na época, ela tinha cerca de 20 anos e cursava Economia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Além de Belo Horizonte, Dilma viveu e militou profissionalmente no Rio de Janeiro e em Porto Alegre.
A partir da fusão da Colina com a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que originou a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), Dilma torna-se dirigente da nova organização e, tempos depois, muda-se para São Paulo.
Dilma foi presa em 16 de janeiro de 1970 em um bar na Rua Augusta, região central de São Paulo. O local era utilizado para encontro clandestino entre militantes. Torturada pelos órgãos da repressão e encarcerada no Presídio Tiradentes, também na capital paulista, a ex-presidenta relembra esse momento doloroso e de resistência.
A primeira mulher eleita democraticamente presidenta do Brasil, com mandato a partir de 2011, teve em 2016 um revés, quando foi afastada do cargo por um golpe orquestrado por distintos setores da política, da mídia e do Judiciário, situação esta retratada no filme Democracia em Vertigem, da cineasta Petra Costa e que foi indicado ao Oscar como melhor documentário. “Eu acredito que o filme Democracia em Vertigem tem um grande mérito, que é denunciar o surgimento no Brasil de um processo de extrema direita, que, de uma certa forma, tem características similares ao que acontece em outros países do mundo”, opina a ex-presidenta.
Ao Brasil de Fato, Dilma também fala sobre as atuais disputas eleitorais, com eleições neste ano e a próxima em 2022, e garante que não concorrerá a nenhum cargo, mas tampouco abandonará a política. Já na análise do atual momento pelo qual passa o Brasil, ela declara: “Aqui, para impor o neoliberalismo foi necessário um governo neofascista”.
Confira na íntegra a entrevista:
Brasil de Fato: No dia 16 de janeiro, se completam 50 anos da sua prisão política na ditadura militar. Na época, a senhora tinha 22 anos. Sendo um episódio marcante da sua trajetória, gostaríamos que a senhora contasse como se deu a sua prisão em 1970.
Dilma Rousseff: Eu tinha 22 anos quando fui presa, no dia 16 de janeiro de 1970. Portanto, fazem 50 anos. O Brasil, naquele momento, estava saindo de um governo democrático, eleito pelo voto popular, presidido por João Goulart e indo para um processo acelerado de ditadura. Esse processo começa em 1964.
Agora, é interessante que o golpe não institui a ditadura num ato só. Ele vai instituindo camadas crescentes de arbítrio e autoritarismo. Primeiro, prende e suspende os direitos políticos de grandes lideranças políticas da época e lideranças do movimento social também, sindicalistas.
Na sequência, suspende direitos políticos de alguns agentes institucionais, tanto na área do Exército como na área do Judiciário. Não só deputados e senadores, mas também juízes e militares são cassados. Na sequência, esse é um processo crescente, vai se fechando. A ditadura instaura censura à imprensa, proíbe partidos e começa uma escalada muito acentuada de fechamento dos espaços políticos e democráticos de participação.
Então, corta-se o direito de greve, corta-se o direito de manifestação, prende-se trabalhadores, prende-se manifestantes do movimento estudantil. Obras culturais, de teatro, por exemplo, sofrem invasões, assim como O Rei da Vela, se não me engano.
E você tem um processo interessante, porque havia também no Brasil, de outro lado, entre 1964 e 1968, um processo de insatisfação grande e também de mobilização muito grande que se prestava no cinema. O Cinema Novo, por exemplo, tem todo um conjunto de obras muito importantes. Você tem também na música e em todas as áreas. E esse é um processo também que vai cair muito forte sobre a cultura no Brasil.
Aliás, é próprio dos processos de autoritarismo e de ditadura você ter um fechamento também na área cultural. Porque o mundo da cultura é um mundo crítico. E, numa ditadura, não só não se aceita crítica política como não se aceita crítica de costumes. Tem até um jornalista, que é o nosso Stanislaw Ponte Preta, que criou o “Festival de Besteira que Assola o País”, que justamente evidenciava que o Brasil estava sendo objeto de absurdos como desse tipo que a gente vê hoje, por exemplo, dizendo que menina veste cor de rosa e menino veste azul. Tinha isso também naquele momento. Foi o Stanislaw que evidenciou e demarcou o que é que acontecia quando você instaura o autoritarismo.
E isso foi crescendo. Quando chega dezembro de 1968, há o AI-5, que eu acredito que é o marco mais claro de construção definitiva da ditadura. E aí começa a repressão. Você reprime movimentos sociais, reprime movimentos operários, camponeses. Há um processo de repressão violento. E esse processo começa e atinge também todas as organizações alternativas de esquerda que surgem nesse processo.
Porque uma das coisas mais graves da ditadura é fazer com que as pessoas, principalmente a juventude, fiquem descrentes da democracia. Achem que não há espaço para a democracia. No Brasil, durante um período, havia essa visão de que jamais deixariam um espaço democrático para as pessoas se manifestarem. Tudo isso leva a movimentos e à construção de organizações políticas fora das organizações tradicionais. Porque a ditadura militar instaura um bipartidarismo entre Arena e MDB e ela cassa todos os demais partidos e proíbe a organização desses partidos.
Então, surgem organizações clandestinas. Eu sou presa no processo de endurecimento do regime militar, que leva, a partir do final de 1969 e início de 1970, a uma constante busca de presos políticos pela repressão. Então, essa captura e colocação em presídios até ilegais, em prisões ilegais, ou seja, nas quais você como preso não era reconhecido até ir para a prisão, que funcionava como uma espécie de cartório no qual te identificavam. Tudo isso se acentua muito e se radicaliza muito durante o governo [Emílio Garrastazu] Médici.
E é o processo que começa e que, depois, vai produzir não só tortura, que já existia, mas a tortura sistemática. E incluindo o que eles chamam de necessidade de mortes e assassinatos políticos, porque acreditam que as pessoas não são recuperáveis. E é nesse contexto que, no início dos anos 1970, já tinha sido criado o DOI-CODI em São Paulo e no Rio, e em outros estados, mas o foco principal estava em São Paulo e no Rio.
Eu fui presa em São Paulo, pelo DOI-CODI 2, do segundo Exército, que era chamado também de Operação Bandeirante, porque uma parte disso foi financiado por um segmento da elite econômica paulista que pagava, por exemplo, muitas vezes, a gasolina, o transporte de toda a operação e também era responsável pelas chamadas quentinhas que começam a aparecer. Eu acredito que as primeiras quentinhas apareceram para alimentar os presos políticos desse país.
Um filme que retrata esse período é o Torre das Donzelas, lançado em 2019, que fala sobre as mulheres presas na ditadura militar no Presídio Tiradentes, em São Paulo, que foi onde a senhora ficou presa. Sobre isso, como foi a vida dentro da prisão, tanto do ponto de vista da convivência com as outras presas políticas, mas também do cotidiano?
O filme Torre das Donzelas é uma mostra, uma visão de um segmento. É um filme de ficção. Não é um documentário stricto sensu. Tem um conteúdo de ficção. Primeiro, porque tentaram reconstruir o presídio de Tiradentes, e o presídio de Tiradentes é impossível de se reconstruir por uma estrutura de ferro. Era um local que diziam que, anteriormente, tinha servido para vender escravos.
Ele tinha, nessa torre — era uma torre mesmo, propriamente dita — tinha paredes muito largas, aquelas paredes coloniais antigas extremamente largas. Tanto que você sentava numa janela. Eu tenho 1,70 m, hoje devo ter encolhido um pouco, mas naquela época eu acredito que eu tinha 1,70 m. E eu sentava na janela esticada. A janela me cabia tanto no sentido da largura como do comprimento.
Era muito irônico. Porque era um local que, visivelmente, serviu para a pior coisa que esse país já teve, que foi a escravidão. E tinha uma forma de sobrado brasileiro.Tinha aquela escadaria que começava unida e depois se repartia e virava um pé direito muito alto. Então, é muito difícil você ver a Torre.
Eu disse a elas quando eu fui gravar: “Eu acho que não é adequado. Vocês acham que vocês fizeram, mas a minha memória não tem nada a ver com aquela arquitetura de ferro. Não é aquilo”. E é importante entender porque que era. Porque você organiza o cotidiano numa cadeia disputando duas coisas: tempo e espaço.
O que é uma cadeia? É o controle do seu tempo. Então, o controle do seu tempo é o seguinte: sempre que impuserem uma disciplina em uma cadeia, está descontrolando o tempo. Se disser: “De manhã você faz isso, meio dia você faz aquilo e à tarde você faz isso, e à noite…”. E o espaço, por suposto, porque te trancam numa cela.
Qual foi a iniciativa política que as presas mulheres tiveram dentro da Torre? Elas controlavam o tempo e o espaço, dentro das suas possibilidades limitadas. O que significava isso? Procurar o máximo de tempo possível ficar com a cela aberta, permitindo que você circulasse de um lado para o outro.
Vou insistir, eram espaços extremamente passíveis de serem circunscritos, porque eram paredes muito largas. E, aí sim, essas paredes largas, geralmente eram bloqueadas por uma porta de ferro. Uma presa, inclusive, uma vez, fechou uma porta no dedo e o dedo quebrou, fratura exposta, porque a porta era bastante larga.
Então, nós conseguíamos ir de uma cela a outra, porque controlávamos o espaço também, e o tempo. Nós decidimos o que fazer dentro do tempo. Nós começamos a cozinhar a nossa própria comida, a buscar os livros, o maior volume de livros possível dentro de uma prisão. Eu acho que uma das coisas mais importantes que nós conquistamos foi isso: tínhamos muitos livros.
E tínhamos discos. Eu conheci tango na prisão. Não era da minha área. Eu era de Minas Gerais, nasci em Belo Horizonte. E vivi minha vida adulta lá e depois fui para o Rio.
Então, o cotidiano era uma disputa constante. O preso é um preso, principalmente quando está em grupo. Um preso individual é diferente, sozinho. Porque a solidão na cadeia é uma coisa muito dura. Por isso eu acho que o presidente Lula tem um grande mérito de ter sido capaz de construir para si uma vida decente dentro de uma prisão. Porque você constrói uma vida decente, mas nós tínhamos muitas companheiras. Era muita gente. Então construímos uma vida cotidiana, apesar dos pesares.
E, ao mesmo tempo, construímos também uma vida política, porque a gente dirigia, dentro das nossas possibilidades, ou seja, limitadas, a gente dirigia nossa vida. Nós definimos quem cozinhava, quantas equipes eram, quem lavava a Torre, quantas vezes por semana, quem entrava… Enfim, nós construímos um cotidiano, nisso que eu falei de conquistar o espaço e o tempo.
Da mesma forma, a gente estava em uma etapa da prisão. A prisão no Brasil era assim naquela época. Você era presa e você desaparecia. Ao entrar na prisão você desaparecia. Não tinha registro. E aí, havia tortura sistemática por um tempo. E geralmente essa tortura se dava nas estruturas controladas pelas Forças Armadas, basicamente o Exército.
Depois disso, você era levada a partir de um determinado tempo. Na minha época eram uns dois meses, mais ou menos. Você ia para o DOPS, Departamento de Ordem e Política Social, e fazia aquilo que se chamava “fazer o cartório”, que era fazer seu registro. Você tirava aquelas fotografias de perfil, de frente, pegavam as suas impressões digitais e fazia o depoimento. Porque o depoimento obtido na Operação Bandeirante não aparecia. Porque no processo de tortura no Brasil, eles mantiveram a aparência.
Tinha um momento que era dos curto-circuitos. Onde é que se dava o curto-circuito? Do momento em que você saía do DOI-CODI, né? O processo de cartório é o processo de curto-circuito. Ele te legalizava. Então esse é um momento fundamental. Porque é aí que os dados do processo começariam a aparecer.
E tinha outra característica também, que eu vi aqui repetido nesses processos da Lava Jato. Eles segmentavam a acusação. O que é segmentar a acusação? Eu integrava uma organização política. Eu nunca participei de ação armada, etc. Mas eu integrava uma organização política. Então, eu não era condenada por integrar uma organização, eu era condenada pelos estados por onde eu andei. Então eu tinha um processo em Minas, um em São Paulo e outro no Rio de Janeiro. E aí você levava três temas. Porque isso também te mantinham na cadeia, né?
Quando você saía, mesmo sobrando tempo, depois de cumprir, eu fui condenada, eu acho que a seis anos e meio. Eu cumpri três anos. Depois, eu cumpri três anos por quê? Porque, no meu processo, a Justiça derrubava sentenças. Porque você era julgado três vezes pela mesma coisa. Então eu acabei sendo condenada a dois anos e um mês. E fiquei três anos. Eles não te devolviam esse ano que você ficou a mais porque a lei de segurança dizia que não tinha devolução, nem processo contra o Estado nem nada. Então essa era a ideia.
E a tortura é algo extremamente complexo. Eu acho que todo mundo que passou pela prisão sempre vai ter essa marca. Eu não gosto de ver filme, por exemplo, que passa tortura. Não é que eu não goste. Eu não vejo. É pior, né? Eu não quero ver. A tortura é algo que mexe com aquilo que é mais profundo e que constitui você.
O que constitui um ser humano? A imensa capacidade de sentir dor física, e psicológica também. Mas a física é algo que nos identifica com o resto da humanidade e, inclusive, com os mamíferos, os animais. Eles também têm dor. A dor é uma coisa, no caso do ser humano, ela é sempre uma ameaça de morte, quando se trata de tortura. Uma está ligada à outra. Então é dor. A percepção da dor e da morte. É isso que a tortura é. E todos nós, cada um de nós, temos horror a ter dor.
Cada pedaço do seu corpo reage à possibilidade da morte, por isso que quando a pessoa está com muita depressão é que ela se mata. Se ela não tem depressão, é muito difícil ela se matar. É complicadíssimo, ela não se mata, mesmo em situações limites. Para você dar esse passo, é algo muito difícil. Então, nós temos de enfrentar o fato de que trabalham com isso, trabalham com dor e morte. É isso que é a tortura. Dor e morte sistematicamente.
E com algo terrível, que é fazer a pessoa perder a dignidade. Esse é o componente da dor psicológica. Eles querem que você perca a dignidade, que você traia as suas convicções, que você abandone o que você pensa. Isso é, talvez, a decorrência maior da prisão. Você é preso e é isso que fazem.
Eu tenho imensa solidariedade por alguns dos companheiros que foram levados a renunciar às suas convicções depois de processos de tortura, indo à televisão. É uma solidariedade que eu tenho com eles. Esse processo de destruição de alguém, é um processo de fazer com que a pessoa se transforme em um morto-vivo. O que faz uma pessoa depois de trair o que pensa, depois de trair a si mesmo? Fica morto andando pela rua.
Então, esse processo, que é um processo que os Estados Unidos faziam em Abu Ghraib [prisão iraquiana], é um processo que você percebe que ele tem um componente extremamente fascista ou nazista, de destruição da pessoa. Esse processo é um complemento elevado à enésima potência da tortura e da morte também.
Então, eu vi gente que foi levada nesses esquemas e acho que cada um de nós só aguenta tortura se enganando. Você fala: “Agora eu aguento mais cinco, dois minutos. Agora eu aguento mais três minutos”. Porque você não imagina que você vai aguentar um dia, porque isso é uma eternidade. Misturou dor, o tempo passa a ser minutos ou segundos. Então, você tem que se autoenganar. É assim que você faz. Você se autoengana. E mente.
Uma vez eu fui para o Senado, e um senador, se não me engano, o Agripino Maia disse: “Mas você mentiu perante a tortura”. Eu tenho orgulho de ter mentido. Na ditadura ou você mente ou você não sobrevive. Na democracia é que se fala a verdade.
Então, esse é um processo e tem uma porção de pessoas, todas as pessoas que estão dentro do presídio passaram por isso. Elas viveram isso. Então isso está subjacente. A gente ri, a gente brinca, a gente joga vôlei, sempre que pode, ou sempre que conquista esse espaço, mas a gente tem essa marca, cada uma de nós. E é com isso que a gente convive e cria cotidiano, porque tem também outras vantagens. A gente tinha 20 anos, a gente achava uma pessoa de 30 muito velha. Então, quando você tem 20, também é mais fácil tudo isso, você tem força vital para superar isso. E eu acho que não tem como passar a vida tendo mágoa disso, isso é um absurdo. Porque não é possível ter ódio. Ódio é dar a quem fez isso contigo, um poder que não pode ter. Você tem de olhá-los como eles são: banais. São banais. Podem ser taxados de criminosos, mas qual criminoso não é um pouco banal?
Hoje a gente vive um cenário em que o governo Bolsonaro têm o militarismo como uma de suas bases. A gente já tem casos de censura a pesquisadores, artistas, organizações sociais. Presidenta, na sua avaliação, é possível relacionar esses dois momentos? Quais são as aproximações do tempo da ditadura com a conjuntura atual que a gente está vivendo?
Eu acho que são diferentes. Quando ocorreu o processo da ditadura, você tinha um tipo de governo. A forma política da ditadura, ela implica a gente fazer uma imagem que talvez fique mais fácil, é imaginar que a democracia é uma árvore, a ditadura implica em um corte radical da árvore. Você corta galho, você não deixa pedra sobre pedra. Você tira todos os direitos: organização, manifestação; o Congresso fecha. Você fecha todas as hipóteses. A sociedade como um todo é atingida.
E esse processo que nós estamos vivendo, na crise do neoliberalismo, no caso brasileiro, você tem uma espécie de invasão da árvore por fungos parasitas por processos de contaminação, que corroem a democracia por dentro. Aí você tem, por exemplo, a Lava Jato, que talvez tenha sido o maior instrumento para construir a pauta neoliberal.
A Lava Jato existe para construir a possibilidade de tirar direitos dos trabalhadores, a possibilidade de uma reforma da Previdência que produz 1,3 milhão pessoas esperando aposentadoria, com filas no INSS, coisa que nós tínhamos acabado. Produz a venda das nossas estatais. Venderam a EMBRAER para a Boeing, uma empresa que está em crise porque caiu aquele jato deles, sem falar que eles já vinham tendo problema, a ponto da Airbus já ter passado a Boeing agora.
Mas, de qualquer jeito, eles entregam a soberania brasileira, porque eles se submetem a todas as exigências do neoliberalismo tardio. Esse sistema, que já está em crise no mundo, já que cria uma brutal desigualdade, que destrói as políticas sociais e a redução imensa da miséria e da pobreza que nós fizemos.
Pois bem, isso só ocorre porque a Operação Lava Jato constrói a narrativa da corrupção, que é estratégica para destruir não só o PT, mas destrói os outros partidos, de direita, de centro. Tanto é que surge o neofascismo do Bolsonaro. Então, o fenômeno do neofascismo é típico desse processo.
O outro processo é a ditadura militar. Eu não quero fazer juízo de valor, acho que os dois são péssimos, mas, nesse caso, do neofascismo você ainda tem espaços democráticos. Há de se perceber isso. O que não significa que o povo brasileiro possa sofrer muito mais sobre o governo de uma forma de extrema direita, como é o do Bolsonaro, que é contra tudo.
É contra todos os aspectos culturais da vida que se coloca de joelhos perante os Estados Unidos, que faz com que o país perca toda a autoestima que conquistou nos últimos anos nos governos do PT.
Então, é uma situação de descalabro econômico, social, político e cultural. Não tem área que não tenha essas feridas. Porque, por exemplo, o governo [Ernesto] Geisel não foi um governo entreguista, foi um governo que autorizou a morte, que é absolutamente sem palavras que não sejam aqueles adjetivos que a gente tem de usar. É um terror de Estado, é um absurdo a morte de adversários como forma de luta política. Que é o caso da autorização de morte dos presos na época do governo Geisel. Mas o governo Geisel tem um mérito, porque defendeu a economia brasileira. E esse mérito vai ser reconhecimento dele, porque não entregou o país. Não negociou a soberania do país.
A gente está num ano eleitoral. As eleições municipais já dão sinais de um cenário para 2022 também. A senhora foi candidata ao Senado em 2018, em uma eleição marcada pela ascensão do bolsonarismo. A senhora tem planos de se candidatar em algum momento?
Não, não tenho nenhum. Não tenho mais planos eleitorais. Eu tenho planos políticos. O que não significa planos eleitorais.
Em relação às eleições, tomando como lição o cenário de 2018, o que a senhora aponta como a postura do que deveria ser a esquerda brasileira numa próxima disputa eleitoral.
A esquerda brasileira e os progressistas brasileiros tinham de se unir. Eu acho que é nisso que todos acreditam. Eu acho interessantíssimas as propostas sobre que é necessário ir ao centro. Só que, quem fala que é necessário ir ao centro, ou seja, que as políticas de consenso que levem a uma desradicalização, que possibilitem uma despolarização, partem do princípio de que é um centro, um centro político.
De fato, no Brasil, houve um centro político. A gente pode até chamar esse centro político de centro democrático. Esse centro democrático estava claro na Constituinte de 1988, que tinha o Dr. Ulysses [Guimarães], Mário Covas, pessoas de estatura, que eram pessoas que tinham compromisso com o país. O que que aconteceu? O centro político no Brasil foi sendo fragmentado e, nos últimos anos, no caso por exemplo do PMDB (MDB), esse centro político construiu uma hegemonia pela direita nos anos do Eduardo Cunha.
Mas não foi isso só que aconteceu. A arma Lava Jato, que é fundamental, foi construída para destruir o PT. Mas ela teve também um efeito que foi atingir os partidos que não estavam previstos para serem atingidos, como o PSDB. Mesmo eles sendo tratados de forma absolutamente diferenciada, eles foram bastante atingidos. Em especial, aquele que não soube perder. Nosso querido golpista, que não soube perder. Mas eles acertaram ao construir um governo ilegítimo como o de Michel Temer e levar para o governo toda a proposta…
Porque o Temer tem razão quando diz que Bolsonaro completa ele. É verdade. Ambos são neoliberais. Mas o que acontece é que, com isso, o centro é destruído. Ou melhor dizendo, o centro se destruiu. Aécio Neves, José Serra, pelo PSDB. O PSDB desmontou. O Alckmin foi um concorrente importante à Presidência e levou 4% só na última eleição, que produziu Bolsonaro.
O centro foi destruído pelo processo. Não cria um cara de centro-direita graciosamente. Ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos e na Alemanha, que o neoliberalismo se impõe nos marcos da democracia liberal, aqui, para impor o neoliberalismo foi necessário um governo neofascista.
E esse governo neofascista constrói na destruição do centro. Então, qual é o centro que é passível de se conversar? Que não esteja completamente comprometido e contaminado pela política neoliberal neofascista? Porque achar que o neofascismo é algo solitário, sozinho, e não é como uma espécie de irmão siamês do neoliberalismo é não entender a história. É não entender que aqueles que posam de centro e que são neoliberais, eles compactuam com o neofascismo. Podem até franzir os narizes e levantar as sobrancelhas, mas apoiam. Porque só eles podem entregar as reformas neoliberais que eles querem.
Então, a eleição precisa desse polo verdadeiramente democrático que é integrado pelo pessoal mais progressista de esquerda. E que percebe que não existe neofascismo sem neoliberalismo,e não existe neoliberalismo sem neofascismo. Não dá para acreditar na divisão desses dois. É isso que caracteriza as eleições de 2020.
Presidenta, sobre o documentário Democracia em Vertigem, não se fala em outra coisa nesta semana desde que o filme foi indicado ao Oscar de 2020. Como a senhora recebeu a notícia da indicação e o que significa politicamente esse reconhecimento internacional da obra da diretora Petra Costa?
Eu acredito que o filme Democracia em Vertigem tem um grande mérito, que é denunciar o surgimento no Brasil de um processo de extrema direita, que de uma certa forma tem características similares ao que acontece em outros países do mundo. Mas, para efeito só do país, eu considero que é muito importante o que a Petra Costa mostra nesse filme. Porque ela mostra com imagens do momento o que, do ponto de vista dela, ocorreu. E do meu ponto de vista também: que foi um golpe de Estado.
Ou seja, um processo em base nos fundamentos jurídicos da Constituição Brasileira, que prevê um impeachment no caso de crime de responsabilidade, sem crime de responsabilidade. Coloca na pauta um golpe de Estado justamente para viabilizar uma agenda que tinha sido derrotada em quatro eleições consecutivas.
Eu acho que essa narrativa mostra toda a ação dos principais sujeitos daquele momento. Então, a imprensa, as responsabilidades da imprensa neste processo do golpe estão evidenciadas. Assim como a responsabilidade do PSDB, as responsabilidades no surgimento das lideranças de direita, que hoje ocupam o cenário. E, sobretudo, ela evidencia como é que isso abriu caminho para a chegada do Bolsonaro ao poder.
Fonte: Brasil de Fato