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Minas e a vanguarda modernista da década de 20

“O movimento modernista ensinou a rir, antecipou a agitação revolucionária brasileira e preparou o ambiente para a indagação sociológica, a pesquisa de laboratório, o romance inspirado nos problemas da terra e do homem, o aproveitamento do material folclórico na música e nas artes plásticas. Fez tudo isso, e outras coisas. Divertiu, irritou, destruiu e construiu. E ainda perturba a insônia de alguns pobres diabos”.

Um balanço que oportunamente merece ser recuperado no ano do centenário da Semana de Arte Moderna. Foi assim que Carlos Drummond de Andrade reagiu quando questionado se, apenas duas décadas depois daquele ruidoso evento, considerado o ato inaugural do modernismo no país, o movimento – que buscava romper com o tradicionalismo artístico, ainda muito ligado a escolas europeias, e constituir uma arte de autêntica brasilidade em forma e conteúdo, isto é, falando de questões nacionais a partir de uma linguagem genuinamente brasileira – já estaria morto.

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Hoje, mais do que apaixonada, a resposta do poeta parece apropriada. Afinal, a atenção dada aos cem anos da Semana de 22 é digna de um grande acontecimento histórico, tão marcante e determinante quanto atípico. Aliás, atípico até no tempo de duração: realizado no Theatro Municipal de São Paulo, que reuniu nomes que se tornaram ícones da literatura e artes nacionais, como Mário de Andrade, Menotti del Picchia, Oswald de Andrade, Anita Malfatti e Heitor Villa-Lobos, o evento se estendeu entre 13 e 17 de fevereiro, e, portanto, durou menos de sete dias.

O evento e o movimento que se consolidou a partir dele seguem em disputa. Há quem considere que o modernismo, por ter sido rapidamente assimilado, tenha deixado de representar uma vanguarda e apenas tido ressonâncias esporádicas entre as décadas de 50 e 80, como avalia o escritor Luiz Ruffato. Ou quem acredite que o legado deixado por esses autores, acima de tudo nos anos 20, é tão forte que seria dispensável pensar em reverberações modernistas na contemporaneidade, como sustenta o sociólogo Sergio Miceli. E, para outros, a encurtada Semana de 22 foi a pedra angular de um movimento que, ironicamente, um século depois, segue em aberto. É o que defende Ivan Marques, professor de literatura brasileira da Universidade de São Paulo, autor de livros sobre o movimento modernista, entre os quais “Cenas de um Modernismo de Província”, que esmiúça as características do movimento em Minas, analisando obras dos mineiros Drummond, João Alphonsus, Cyro dos Anjos e Emílio Moura.

Ele lembra que, assim como o evento agora celebrado, a Semaninha de Arte Moderna de Belo Horizonte, realizada em 1944, também causou furor – tanto que obras em exposição chegaram a ser vandalizadas. Para o pesquisador, essa percepção escandalizada de ambos acontecimentos é entendida como natural, uma vez que ainda há grande incompreensão em relação à produção artística produzida por essa vanguarda cultural. “E isso me faz pensar que este é um processo mais longo, que, embora seja o marco simbólico, não nasce em 1922 e, apesar de o movimento ser rapidamente assimilado, ele tampouco se esgota naquela mesma década”, avalia.

“O modernismo continua apontando aqui e ali, em acontecimentos e correntes de maior e menor repercussão”, diz Marques, citando reverberações dessa matriz de pensamento em diversas searas artísticas, como no regionalismo, na segunda metade de 1940, no concretismo, na década de 50, na poesia marginal da Geração Mimeógrafo dos anos 70, no Tropicalismo e no Cinema Novo, fundamentalmente após de 1968.

“Posteriormente, o legado modernista deixa de ser uma inspiração tão presente e há um progressivo esvaziamento potencializado pelo momento em que vivemos, que é mais globalizado”, sugere. “No entanto, diante de um contexto de grande retrocesso e potencializado pela celebração do centenário da Semana de 22, minha hipótese é que as discussões propostas pelo movimento – isto é, pensar o país sem tanta concessão, identificando problemas e pensando no que queremos construir – se tornem mais urgentes. Por isso, avalio que este é um processo em aberto”, justifica.

Entre o moderno e o provinciano

Em Minas Gerais, particularmente, antes de 1922, Drummond – antenado às novidades que vinham sobretudo do Rio de Janeiro, mas também de São Paulo – já citava em crônicas publicadas em jornais belo-horizontinos autores ligados à vanguarda modernista. Além disso, naquelas publicações, ele fazia experimentações literárias, flertando com ideias que mais tarde seriam organizadas pelo movimento. É possível, portanto, identificar, mesmo antes da realização da Semana de Arte Moderna, traços de um modernismo à mineira, que, “discreto, (que) fez-se em surdina”, como já descreveu Cyro dos Anjos.

Ademais, para além de um flerte distante, dois artistas de Minas participaram efetivamente do evento cujo centenário celebramos hoje e que é considerado seminal para o modernismo no Brasil. Acontecimento que ainda é percebido com feições quase absolutamente paulistas.

Há cem anos, estavam presentes no Theatro Municipal de São Paulo o poeta Agenor Barbosa, nascido em Montes Claros, no Norte do Estado, e a pintora belo-horizontina Zina Aita, de família italiana. O escritor, aliás, foi um dos poucos a serem aplaudidos pelo público na ocasião, conforme relatam a professora e escritora Ivana Ferrante Rebello e o arqueólogo e historiador Fabiano Lopes de Paula no livro “Uma Tristeza Mineira numa Capa de Garoa – Agenor Barbosa: Um Poeta Mineiro na Semana de Arte Moderna”, lançado em 2020.

As revistas

Apesar de presentes e interessados, só em 1924 os modernistas mineiros passaram a ser reconhecidos como interlocutores e passaram a participar mais ativamente das discussões daquela vanguarda cultural. “Foi a partir da aproximação do grupo de Minas com o grupo de São Paulo, por ocasião da famosa ‘caravana paulista’ que passou pelo Estado”, comenta Marques, fazendo menção a viagem que reuniu Mário de Andrade, Oswald de Andrade e o filho dele, Nonê, Tarsila do Amaral, o jornalista René Thiolier e Olívia Guedes Penteado, uma das grandes incentivadoras do modernismo no país, além do advogado Godofredo Telles e do poeta franco-suíço Blase Cendrars.

Sabendo da passagem deles por Minas, Drummond busca se aproximar do grupo, iniciando a promissora amizade literária com Mário de Andrade, documentada em cartas. Então, já enfronhado no movimento, o itabirano reúne-se com Pedro Nava, Emílio Moura e Cyro dos Anjos para lançar, em 1925, “A Revista”. “Esta é uma publicação que está alinhada aos ideais vanguardistas de então, mas, do ponto de vista gráfico, não traz novidades e, em termos de conteúdo literário, podemos encontrar tanto textos que rompem com a tradição quanto textos conservadores, que convivem ali pacificamente”, analisa o escritor Luiz Ruffato, que possui pesquisa sobre o despertar do modernismo mineiro.

Ele lembra que, a partir de 1922, é possível perceber uma replicação de grupos modernistas no Brasil inteiro. “Em Minas, temos uma característica curiosa e única: o movimento floresceu não só na capital. Em Cataguases (na região Zona da Mata), é lançada, em 1927, a ‘Revista Verde’ (dirigida por Henrique de Resende e tendo como redatores Antônio Martins Mendes e Rosário Fusco) que, diferentemente da publicação belo-horizontina, está vinculada a uma ala mais radical e, portanto, apesar de não haver um alinhamento tácito, se aproxima mais do vanguardismo proposto então por Mário de Andrade e Oswald de Andrade”, pontua ele que, incomodado com o fato de muitos ainda insistirem que a aderência do modernismo em uma cidade do interior de Minas seria um fenômeno inexplicável, lançou recentemente o livro “A Revista Verde, de Cataguases: Contribuição à História do Modernismo”.

“Todo fenômeno sociológico é absolutamente explicável, e esse não seria diferente. O que muita gente ignora é que, nos anos 20, BH era uma cidade muito jovem, com apenas algumas dezenas de milhares de habitantes. A diferença populacional entre os dois municípios não era exorbitante, e, portanto, não faz sentido pensar que Cataguases fosse uma cidadezinha interiorana, menos ainda dizer que era rural. Pelo contrário, estamos falando de uma cidade que se industrializava em um país rural. E isso muda completamente o panorama”, pondera, lembrando que, não por acaso, o cinema brasileiro surge naquele lugar sob as lentes de Humberto Mauro.

Fonte: O Tempo