No início da noite, quando o marido está perto de chegar em casa, Berle* fica apreensiva. “Enquanto ele não chega não tenho sossego. Agora um monte de homem armado nos ameaçando”, conta a quilombola de Igarité sobre a rotina na comunidade.
Ela não quer ceder e deixar o território que descobriu ser habitado por sua família há três gerações, quando foi iniciado o processo de solicitação de demarcação ao Incra, em 2017. A mais velha da comunidade tem mais de 100 anos.
As comunidades quilombolas são remanescentes do que foram os quilombos, formados por africanos escravizados fugidos do horror que viviam no Brasil colonial. Para se enconderem, procuravam regiões remotas – no meio da mata, por exemplo. O isolamento era tática de sobrevivência, mas foi assumido como política pelo Estado.
A Constituição Federal de 1988 consagrou às comunidades de quilombolas o direito à propriedade das suas terras. Isso não aconteceu e elas foram excluídas de políticas públicas. Exemplo é que o primeiro censo para identificar os quilombolas é de 2022.
A maioria dos territórios quilombolas não é sequer demarcada. Segundo o Incra, 378 comunidades quilombolas estão em processo de regularização na Bahia – 25% das 1.500 estimadas pelo Conselho das Comunidades Quilombolas do estado.
Chega-se a uma delas pegando um desvio à direita na BA-099, a Estrada do Côco. É a comunidade quilombola Limoeiro, a 129 quilômetros de Salvador. O território, na zona rural de Entre Rios, onde vivem 320 famílias, é vizinho de Massarandupió e Subaúma, destinos turísticos em ascensão.
Fábio Santos, 42, é um dos quilombolas da região e já se viu sob a mira de armas. “Um dos principais problemas é a especulação imobiliária e o turismo. Já tivemos também que nos defender, já que o Estado não se importa. Se nosso território fosse regularizado, isso ia parar”, diz. Há oito anos, Limoeiro espera uma definição do Incra.
Em 2016, Fábio foi preso durante uma ação de reintegração de posse realizada por posseiros. “Por enfrentar uma reintegração de posse de um território nosso. Eu era ameaçado de morte, graças a Deus não se concretizou”, diz.
É o que hoje vive quilombolas de Riacho Santo Antônio-Jitaí, também no litoral Norte, ameaçados durante outra ação de reintegração de posse. A Corregedoria da Polícia Civil (PC) investiga a participação de um policial nas ameaças. A apuração está na fase de conclusão e não há outros procedimentos abertos. A Polícia Militar da Bahia informou não investigar nenhum agente.
A Bahia é o segundo estado com mais casos de violência contra povos tradicionais: foram 428 vítimas entre de 2017 a 2022, calcula a Rede de Observatórios de Segurança.
Os conflitos se anunciam nos detalhes do cotidiano. De Nordestina, no Norte da Bahia, saem diamantes garimpados das jazidas locais. Mas em parte das casas das 12 comunidades quilombolas onde estão os pontos de mineração não há nem vaso sanitário. A Lagoa do Boi é um desses territórios, onde os moradores pleiteiam desde 2013 a demarcação das terras ocupadas há 200 anos.
“O estado de vulnerabilidade é exorbitante em todos os sentidos”, avalia uma quilombola que prefere não ser identificada sobre a vulnerabilidade social e econômica que acontecem lá, se repetem nos territórios e acirram os conflitos. “Além da poeira ao barulho insuportável pelas atividades, temos que lidar com a falta de água, de alimentos”, completa.
Nordestina está no Nordeste da Bahia, onde os principais conflitos nas comunidades quilombolas estão ligados à mineração, parques eólicos, turismo e grandes empreendimentos de monocultura.
Até o poder público está envolvido em alguns conflitos, como no caso do Quilombo Rio dos Macacos, em Simões Filho, que vive, desde os anos 70, disputas pelo território com a Marinha do Brasil. Militares já invadiram as residências e agrediram quilombolas.
A reportagem contatou quilombolas de Quingoma, em Lauro de Freitas, onde têm sido registrados conflitos relacionados a posseiros, construção de rodovias estaduais e empreendimentos comerciais. Todos eles, no entanto, responderam não ter condições emocionais para entrevista, depois da morte de Bernadete.
Para David Mendez, diretor jurídico Instituto Malê e advogado da família de Bernadete, uma das fontes dos conflitos é a ambiguidade do Estado.
“O mesmo estado que é letárgico para demarcar esses territórios é extremamente célere na liberação de licenças de alvará de funcionamento de empresas nesses territórios, onde realizam suas atividades econômicas e deixam legados de destruição. Especialmente através do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), que inclusive viola sistematicamente a legislação. “
Mendez se refere à implantação de empreendimentos dentro de territórios quilombolas, sem diálogo e consultas prévias com as populações locais – como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatários. Em junho de 2022, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou ao Inema a adoção de “medidas para assegurar a consulta prévia às comunidades quilombolas na Bahia em relação a empreendimentos que impactem esses territórios”.
A recomendação não foi acatada, segundo o MPF. Um dia depois do assassinato de Bernadete, o órgão, então, oficiou o governo da Bahia e voltou a recomendar “a suspensão de licenças para obras e projetos nos quais não tenha havido realização das consultas prévias às comunidades impactadas”.
Questionado sobre o assunto, o Inema não respondeu às solicitações da reportagem. Acionada, a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia também não atendeu às solicitações até o fechamento desta publicação.
Mortes de quilombolas na última década estão sem solução
O Quilombo do Barroso fica no alto de um planalto, onde se distribuem 36 famílias. As casas são afastadas e estão gradeadas, como herança do dia 9 de maio de 2020. Naquele dia, os quilombolas ouviram um barulho tão alto que até hoje, se fecham os olhos, escutam. “Não tiramos da mente”, diz Ana Pereira, 47, sobre o dia em que Antônio Correia, patriarca local, saiu baleado do quilombo.
O assassinato do senhor de 94 anos aconteceu depois de dois boletins de ocorrência registrados por ele, em 2015 e oito meses antes de ser morto, sobre ameaça e invasão de terra, na Delegacia de Camamu. Seu Antônio foi morto em meio a uma disputa por terra. O quilombo e a comunidade rural do Varjão brigam pela titularidade das terras, desde 2008 certificadas pelo Incra como do povo de Barroso. “Hoje buscamos forças para continuar aqui”, conta Ana.
O assassinato de Antônio foi o mais recente antes de 22 tiros matarem Bernadete e segue sem desfecho. Dos crimes contra quilombolas assassinados desde 2013, metade segue sem desfecho judicial.
Em nota, o Conaq afirmou que o índice de mortalidade na Bahia é fundado no que chama de “racismo fundiário”, que nega o direito à terra a pessoas que historicamente as ocupam, e “ineficácia” de medidas imediatas de proteção a quilombolas.
2017 foi o ano de mais perdas para os quilombolas. Naquele ano, oito quilombolas foram assassinados – seis em Iuna, na Chapada Diamantina, um em Antônio Gonçalves, e outro no mesmo Quilombo Pitanga dos Palmares de onde Bernadete saiu morta. A vítima era Flávio Pacífico dos Santos (Binho), filho dela.
Todos os assassinatos têm um aspecto comum: as vítimas eram líderes em comunidade que viviam avanço. Quando Binho foi assassinado, por exemplo, uma das principais etapas para a titulação de Pitanga dos Palmares estava para ser finalizado.
“Assim como não há uma resolução sobre o crime contra Binho, não há explicação para outros crimes contra quilombolas. Essa impunidade deixa um recado que está nesse espectro de que nesses casos o crime compensa. Daí a importância de uma resposta eficaz ao assassinato de Bernadete, para que o poder público consiga mandar outro recado.”
Ele reconhece dificuldades no programa de proteção a defensores de direitos humanos, que não oferece esquema de escolta policial 24 horas aos protegidos – o que é criticado por quilombolas. Uma delas, na avaliação dele, é conseguir criar laços de confiança nos territórios quilombolas.
“Tendo a Bahia a maior população quilombola do Brasil, termos 15 quilombolas protegidos fala, de alguma forma, de uma dificuldade que o programa tem de se aproximar desses territórios. Sobretudo porque estamos saindo de um período em que esses povos foram muito afetados. Então, há uma subnotificação [no número de protegidos], porque também ainda precisamos construir um vínculo de confiança entre nós e os movimentos quilombolas.”
O objetivo da ação, segundo ele, é que as pessoas fiquem no território onde atuam e não sejam obrigados a fugir, como as famílias de Igarité fizeram há quatro meses, sem data para voltar.