Na Juazeiro de João não havia rua nos fundos da casa da família Prado Pereira de Oliveira, e o menino abria o portão já quase pondo os pés nos barrancos do Rio São Francisco, onde mergulhava. A separar as águas da cidade, uma bela balaustrada, recosto na juventude para ele tocar violão com os Enamorados do Ritmo. Em nome de um arremedo de modernização, a murada foi trocada por padronizados canos amarelos – o pedaço de passado branco deixado num canto do antigo cais exala urina.
Na Juazeiro de João havia um tamarineiro frondoso, embaixo do qual ele jogava futebol, conversava, namorava, tocava violão. No início dos anos 1980, a motosserra capou folhas, histórias e memórias.
– Cadê o tamarineiro do Joãozinho? – assustou-se a amiga de infância Maria Izabel Muniz Figueiredo, a Bebela, ao ver a amputação de um símbolo daquilo a que mais se dedica como historiadora e agitadora cultural: o passado da cidade. – Juazeiro precisa ser amada.
João amava olhar para o imponente casarão dos Pereira, que parte de sua própria família vendeu e foi derrubado para dar lugar a um prédio convencional, hoje uma balbúrdia de cores e atividades, de lanchonete a sede de diocese.
Também amava ficar na estação ferroviária da cidade vendo tempo e trens passarem. O transporte de passageiros acabou em 1989, o de carga, na década passada, e hoje o galpão em ruínas fica fechado para evitar mendigos e drogados.
– Era uma festa quando o trem chegava, as pessoas ficavam conversando na estação, esperando. A música que João gravou (“Trem de ferro”, de Lauro Maia, em 1961) retrata isso – lembra Galvão, o artista que, bem antes de integrar os Novos Baianos, tornou-se amigo do conterrâneo, com quem passeava de bicicleta e jipe pelas matas ao redor da cidade.
‘Farras e mais farras’
João amava a companhia de outros amigos que nem estão mais por aqui, como Valter, Pedrito, Edésio, Euvaldo e Eurípedes, o Seu Galo. Este era assim conhecido por seu prazer em falar e cantar, radialista que fazia sucesso no serviço de alto-falante com os programas “O que o povo precisa saber” e “Brancas e pretas”, compositor de “Janaína, senhora do mar”, que João entoava na Ilha do Fogo, no meio do caminho hidroviário entre Juazeiro e a vizinha pernambucana Petrolina.
– Ele entrava aqui em casa, abria as gavetas, pedia Toddy, deitava na nossa cama – lembra dona Ananda, viúva de Galo. – Os dois saíam para farras e mais farras. E deixavam a louça toda para eu lavar.
Para quem só pensa em João curvado sobre seu violão, pode ser estranho saber que ele amava dançar no salão da Sociedade 28 de Setembro, onde também cantou. O clube está fechado e sem conservação, mas foi comprado pela prefeitura para, após reforma, sediar a Secretaria de Cultura e uma escola de música e dança.
Ele dançava valsa, bolero, sempre bem e com muita elegância – recorda-se Edeth Moreira Duarte, um dos pares.
João amava se sentar na Praça Imaculada Conceição, mais conhecida como Praça da Matriz por causa da Igreja de Nossa Senhora das Grotas. Podia ali escrever um poema para a amiga Regina Falcão (“Teus olhos/ são dois molequinhos/ negros e descalços/ brincando/ na janela dos teus olhos”) ou conversar com os doidos da cidade, como Macumbô, Amansa Barro e sua querida Maria Pezinho – a prática contribuía para sua própria fama de doido, até hoje motivo de revolta entre parentes. A praça perdeu a uniformidade arquitetônica das casas de inspiração portuguesa, restando entre os exemplos a residência de número 20, onde João nasceu.
Alugada há 17 anos à Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola pela família de João, a casa de dois andares e cinco quartos vem sofrendo alterações, mas mantém o piso de tacos de duas cores e as portas grandes, de maçanetas altas. A que dava acesso ao quarto de João hoje dá para uma parede de gesso erguida para facilitar a arrumação da sala da gerência da EBDA. Mais mudanças não animam os parentes do músico, nem mesmo, como deseja a atual gestão municipal, a transformação em memorial após ser concluído o processo de tombamento do imóvel.
– Isso nunca foi ventilado por nós. Nossa vaidade não chega a esse ponto. Guardamos ali memórias da infância – diz Maria, a Dadainha, irmã de João que vive em Vitória (ES).
Maria Oliva, a Vivinha, ainda mora em Juazeiro, e prefere o silêncio quando o assunto é seu irmão ilustre. Jovino mora em Fortaleza. Os outros irmãos – Walter, Valcyr (ambos só por parte de pai), Vavá e Dedé – morreram.
Fonte: O Globo
Eis caminhos da história contada, cantada e, lamentavelmente chorada nos barrancos do Opara.