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Educação em tempo de pandemia: há etapa a ser vencida ou vivida?

Nos últimos meses temos vivenciado um cenário caótico diante de um brusco movimento pandêmico que atravessou as nossas rotinas. Num dia acordamos, realizamos as nossas tarefas diárias/laborais normalmente, mas haviam notícias que circundavam a rotina. Como não era uma realidade próxima acreditávamos no controle da disseminação para territórios mais distantes. N’outro dia apenas fomos comunicados que não haveria mais expediente, que as aulas deveriam ser paralisadas e que a recomendação era o isolamento social e a chamada para o “fica em casa”.

Parece que ficar em casa nunca foi tão pesado como nos últimos meses, para alguns de nós. Vivíamos um distanciamento social que nos permitia a sensação de conviver com o (des)conhecido, mas não nos atentávamos, ou melhor, não “tínhamos tempo” para olhar o (des)conhecido e olhá-lo um pouco mais perto. Agora, o desconhecido reflete o nosso próprio estrangeirismo face o mundo e, talvez, possamos retomar caminhos de assumi-lo como sendo um mundo possível de viver por meio da
ação e da pluralidade, segundo o pensamento de Hannah Arendt.

Essas reflexões iniciais trazem o cenário atual do qual vivemos e no qual sinto. Ouvi esses dias um áudio da psicanalista e filósofa Viviane Mosé e comungo da sua ideia de que não tenho produzido tanto porque estou vivendo. Vivendo. Sentindo tudo isso que se passa. Às vezes, com um distanciamento necessário para não perder o estranho-familiar que habita nos dias, para não esquecer da estreia de cada acordar, para não (des)acelerar uma rotina que exige de mim, de nós, um outro tempo.

Sabemos, obviamente, que esta realidade de isolamento social como um convite à reflexões sobre as condições na qual estávamos/estamos forjando os nossos dias não é realidade de todos, pois todos não existem. O cenário de muitos está relacionado há algumas pré-ocupações ligadas à sobrevivência, ao que de básico é necessário para a permanência dos dias que seguem.

Tenho refletido, entretanto, sobre qual é o papel da educação na contemporaneidade? Onde se situava/situa este campo de conhecimento e prática na vida cotidiana? Seria a educação, fundamentalmente, uma obrigação das instituições escolares? Que papel a educação tem em um país como o nosso, no qual a ideologia do governo federal está alinhada com a ruptura da garantia dos direitos fundamentais?

Educação para quê e para quem em um cenário pandêmico? Há muito a educação esteve relacionada a um aprender para desenvolver algo.

Compreendemos, assim, que a educação não é um fim, mas um meio para desenvolver uma técnica, uma habilidade, uma competência (não que isso não seja compreendido como algo importante). A educação é vista como fases em que precisa-se dar conta de conteúdos programáticos, sem o mínimo de reflexão, para que se alcance o próximo nível. Nessa seara, a escola apresenta-se como um lugar de passagem, passagem que
está vinculada ao mercado de trabalho que deseja receber homens e mulheres que estejam tecnicamente preparados mas… desconectados de si. Se alargarmos os nossos horizontes educacionais passaremos a entender que o processo educativo não é um lugar de passagem e, sim, uma realidade que precisa ser vivida em sua presentificação.

A escola é o presente, não como algo dado, mas como acontecia de quem vive nesse lugar. Recordamos o imperativo “estude para ser alguém…” como algo que põe em xeque a constituição de sujeitos que são aprendentes e estão no mundo, sonham, coabitam e se responsabilizam pelas ações empreendidas aqui. Em um cenário de crise como este, quem somos quando estamos fora do espaço escolar e/ou do espaço do trabalho? Quem somos frente a um imperativo que, em certa medida, restringe as possibilidades do que pode ser vivido e incorporado a formação do sujeito?

Entendemos que por trás de um imperativo como este está um significativo interesse do mercado e do neoliberalismo em atomizar os sujeitos à mera condição de pensar-se alguém pela via daquele que hoje é senhor e escravo de si, sendo “ninguém” caso esteja “fora” dos padrões sociais impostos sobre o que é “ser alguém” e, portanto, único responsável pelas suas condições. Adianto que ser alguém numa sociedade como a nossa está
vinculado a ideia de ser consumidor, logo, estamos a comprar um produto chamado educação e ao consumi-lo esvaziamos o seu sentido.

A partir do documentário “Nunca me sonharam” (2017) registramos a fala de uma das participantes em que a mesma expressa que “não existe uma escola emancipatória numa sociedade opressora”, aspecto tematizado/vivido pelo patrono Paulo Freire. A condição de qual papel para a educação na contemporaneidade precisa estar, sem dúvida, em um repensar as inclinações, percursos, trajetórias sobre a Educação/Escola. Talvez até hoje tenhamos vivido sob uma certa verdade do que seja Educação/Escola e por isso, também, seja tão difícil para alguns governantes,  professores, estudantes, pais e sociedade civil compreenderem um momento de brusca parada como este, um momento de crise que exige de todos nós uma implicação com o processo educacional.

Para Arendt (1961) O que nos diz respeito a todos e, consequentemente, não pode ser confiado à pedagogia enquanto ciência especializada, é a relação entre adultos e crianças em geral ou, em termos ainda mais gerais e
exatos, a nossa relação com o facto da natalidade: o facto de que todos chegamos ao mundo pelo nascimento e que é pelo nascimento que este mundo constantemente se renova. A educação é assim o ponto em que se decide se se ama suficientemente o mundo para assumir responsabilidade por ele e, mais ainda, para o salvar da ruína que seria inevitável sem a renovação, sem a chegada dos novos e dos jovens.

A educação é também o lugar em que se decide se se amam suficientemente as nossas crianças para não as expulsar do nosso mundo deixando-as entregues a si próprias, para não lhes retirar a possibilidade de realizar qualquer coisa de novo, qualquer coisa que não tínhamos previsto, para, ao invés, antecipadamente as preparar para a tarefa de renovação de um mundo comum.

Sendo assim, a transformação só poderá acontecer quando notarmos que a
construção do “ser alguém” não depende apenas de frequentar a escola, mas de uma ação de amor mundi e das outras condições, tempos e espaços que permitam a cada pessoa forjar-se como ser-constante-aprendente-ser.
E retornando a pergunta mobilizadora desse escrito: Que lugar existe para a
educação? O que mesmo compreendemos por educação? De quem é a tarefa de educar?

Não nos esqueçamos que todos somos ensinantes e aprendentes, uns por profissão como no caso professores e educadores, mas todos por vocação, pois sempre há algo para aprender de alguém. Que nossos ensinamentos e aprendizagens possibilitem ampliar o olhar para com o bem comum e não como um meio para guerras ideológicas que desintegram a humanidade, ao invés de unir e estabelecer conexão que cresça e mobilize ao processo de mudança a cada pessoa.

Estamos em tempos difíceis, sem saber o que será no dia de amanhã, tudo
imprevisível, tudo se reestruturando, o que nos resta é saber esperar, sem causar mais danos sejam físicos ou psíquicos as outras pessoas e a nós. Pois, a partir do momento que cobro do outro mais do que ele pode dar, estou desumanizando as relações, assim também como as instituições, no caso de nossa discussão os espaços educacionais.

Que cada um perceba-se educador(a), levando as gerações a reflexão de que a vida importa mais do que a mudança de níveis escolares, pois tudo pode recomeçar com novos jeitos de ser e viver, de maneira emancipada, consciente e empática para a vida planetária e das pessoas que nela está. Todas as etapas da vida importam e vamos nos “esperançar” para viver esse momento pensando que outros mundos são possíveis como nos fala Ailton Krenac, construindo um lugar em que todos caibam, sem exceção e se eduquem para uma experiência totalizante de respeito, consciência e experiência de ser-no-mundo. Por fim, e parafraseando o Carlos Drummond de Andrade se procurarmos bem, encontraremos não a explicação (duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida.

Emanoela Souza Lima
(Psicóloga, mestranda em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação
da UNIVASF, integrante da Educuidar – Consultoria em Educação.
Atualmente atua em contexto escolar na rede privada)

Clara Maria Miranda de Sousa
(Psicóloga, Pedagoga, Mestra em Formação Docente e Práticas
Interdisciplinares e integrante da Educuidar – Consultoria em Educação)

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