Por Joseph Bandeira
Em que pensaria “O Pensador” de Rodin senão na morte, tanta e tamanha a concentração em que medita na “Porta do Inferno”? Por que tenta em vão o homem tapar os ouvidos com as mãos para não ouvir “O Grito” do seu próprio desespero ante “a dor do mundo”, que Munch eternizou na mais valiosa tela do Expressionismo? Pode haver sensação mais desagradável que a do pensamento fixo na fumaça e nas cinzas em que velozmente se transformam os desejos e os prazeres o “da existência? Como racionalizar o paradoxo segundo o qual o “passar” é a própria essência do “ser”? Por que a dor e a morte não se cansam nunca de nos caçar?
Flávio Luiz deve ter-se-feito essas e outras perguntas vezes sem conta. Espontaneamente nascidas do “emaranhado quântico” da existência com o pensamento, são fraturas expostas na síntese do fenômeno humano em si, relativizado na singularidade de homem ou mulher, hetero ou homossexual, rico ou pobre, branco ou negro, muçulmano ou budista, cristão ou ateu, jovem ou velho, sadio ou enfermo, feliz ou infeliz. Respondê-las é o escorchante imposto que pagamos à consciência de que vivemos para morrer. Que provação das provações não será, portanto, a da inteligência que as formula, sabendo-as antecipadamente sem respostas que convençam. Mas eu apenas aqui e agora as repito, ainda que sem aspas, porque absolutamente dispensáveis, sem lhes acrescentar, todavia, um só grama ou milímetro de angústia ou perplexidade.
Mesmo não tendo vocação para artista ou pensador, porque era um pragmático em tudo que fazia na vida, viver inclusive, Flávio Luiz, por ser culto, cultivava também o pensamento. “Viver por viver qualquer animal faz isso muito bem”. Pensar cada vez mais sobre si e sobre o mundo é colheita obrigatória da própria fatalidade existencial. Saber é o verdadeiro sabor de todo esse ininterrupto exercício de coragem e paciência. Teorizar e praticar são o lado de dentro e o lado de fora dessa sabedoria entressonhada. Dos dois sentidos de praticar, entretanto, conversar jamais poderia ser o menos importante. E Flávio Luiz era um grande conversador. Perder dois dedos de prosa com ele era ganhar uma ou duas mãos de ajuda, sobretudo para despertar em seu eventual interlocutor melhor discernimento a respeito de qualquer assunto, perguntas de impossíveis respostas convincentes inclusive.
Quando nos conhecemos entre o quarto e o quinto anos primários, na escola das professoras Lourdes Duarte e Terezinha Miranda, andávamos em torno dos sete para oito anos. Como pertencíamos a mundos diversos, social e economicamente, fomos apenas colegas distantes naqueles dias. Disputávamos, então, às vezes com algum acirramento, o primeiro lugar em todas as disciplinas que nos eram ministradas. Se um tirava nota 10 em matemática ou português o outro tirava 9,9, obrigatoriamente. Mas a longa competição de semanas e meses a fio, ao oposto do que se poderia imaginar, nunca foi motivo para afastamentos ou rancores. Seria, ao contrário, causa eficiente de uma cada vez maior admiração recíproca, a consolidar-se sempre mais e de tal sorte que, quase vinte anos depois, quando já estávamos voltando de Salvador para Juazeiro (ele engenheiro civil e administrador e eu advogado e professor universitário), tornamo-nos amigos.
Nunca conheci ninguém que pensasse mais, e com minúcias, este município, esta cidade, seu potencial, sua lógica desenvolvimentista, suas vocações maiores, seus problemas. Quando fui companheiro de chapa do saudoso Prefeito Arnaldo Vieira do Nascimento em 1976, Flávio Luiz, como era de esperar, já que crescera numa tradição política diferente da nossa, não pôde nos apoiar com seu voto. Doze anos depois, tornou-se, em contrapartida, meu maior colaborador na eleição de 1988 e, logo em seguida, o melhor assessor de planejamento que qualquer prefeito poderia ter tido em sua primeira administração municipal, como a que tive a honra de liderar a partir de janeiro de 1989. Em 1992, como não poderia deixar de ser, foi ele o candidato que contou com meu integral apoio na batalha eleitoral para suceder-me na Prefeitura. O eventual insucesso nas urnas naquele pleito nunca me fez, entretanto, por um momento sequer, duvidar do que eu sempre soubera, mesmo ainda na escola primária: ele era, já desde aquela época, e até os dias de hoje, entre todas as pessoas com as quais convivi em mais de quarenta anos de vida pública, o juazeirense mais preparado para governar nossa terra, o que inexplicavelmente nunca pôde acontecer. Que visão estratégica e detalhada de tudo! Que paciência inesgotável para ouvir a repetitiva arenga das mais estranhas personagens da peça política em cartaz, qualquer que seja a ocasião! No prélio eleitoral do ano passado, para não fugir à regra, ei-lo novamente como o principal articulador das candidaturas vitoriosas, para prefeita e vice, de Suzana e Leonardo. Quando a vitória esmagadora se consumou em 15 de novembro, porém, ele já não estava mais aqui. E eu nem pude, formalmente, dele me despedir, porque ambos estávamos, cada qual em seu isolamento, sob estrita prescrição médica, lutando para resistir aos efeitos tenebrosos da Covid-19, que nos acometera naquele mesmo tristíssimo período fatal de outubro.
“Viver para contar” é o título do primeiro volume, que acabou sendo o único, das memórias de Garcia Márquez, por ele mesmo redigidas. Tivesse tido tempo para preparar sua saída de cena, uma vez que não lhe faltavam motivos biográficos relevantes para isso, certamente Flávio Luiz, que nunca foi nem aspirou a ser literato, menos ainda Nobel de Literatura, poderia ter contratado alguém para lhe escrever a biografia, com algum título semelhante. Cairia talvez melhor “Confesso que vivi”, como se autobiografou Neruda. Eu até já imagino como o biografado, surpreso consigo mesmo, a certa altura do necessário depoimento confessional ao seu biógrafo se definiria, em essência, como, apenas, um homem público – um político, portanto, no mais rigoroso sentido da palavra e do conceito de Política, que só pode ser assim definida: permanente ação pessoal em benefício da pólis, isto é, dos outros, sinônimo, consequentemente, de exercício militante da Ética de Responsabilidade. Tenho certeza de que esse seria o mais fidedigno retrato de Flávio Luiz, que poderíamos estar inaugurando hoje na galeria dos mais destacados filhos desta terra, justamente na data em que ele completaria 71 anos de idade se ainda aqui estivesse. Essa constatação em nada prejudica a visão que dele sempre tivemos: a de alguém que fazia questão de ser, e parecer, um estudioso de manuais técnicos sobre como fazer melhor o que precisa ser feito. E como se sabe, técnica é apenas aplicação prática da ciência.
A evolução do conhecimento técnico/científico, aliás, é um verdadeiro assombro. Qualquer ciência tem hoje, de fato, uma chave mestra, pelo menos, com que possa abrir portas secretas, cada dia mais escancaradas para o desconhecido. Maravilhados, os cientistas viram e reviram o todo pelo avesso e nos afirmam que nada é impossível. Se ainda são infinitas as perguntas sem respostas, a razão, que milenarmente as tem feito, nada perde por esperá-las. A qualidade e a quantidade das informações sobre a natureza e a história da matéria universal e seu movimento no espaço e no tempo (santíssima trindade que tudo habita, do átomo cósmico ao cosmos atômico), põem em relevo, cada vez maior, a mágica ou a mística de qualquer saber provado e comprovado, a começar pelo mundo mais conceitualmente puro e absolutamente ideal da matemática. Não já foi dito por Galileu, quinhentos anos atrás, que ‘A matemática é o alfabeto com o qual Deus escreveu o universo’? Também não disse Pitágoras, dois mil anos antes de Galileu, que o número é a essência do todo, visível em qualquer de suas partes? Contando sempre com essa perene intermediação do espírito santo da matemática, o que dizer da física, da química e da biologia, com seus arsenais tecnológicos de alcance quase inimaginável em termos de possibilidades de compreensão dos fenômenos universais? Isto inobstante, a doença continua a ser adversária implacável da saúde, e a morte acaba sempre derrotando a vida.
Desde a descoberta primordial dos meios de produzir e usar o fogo, passando pela seleção das espécies vegetais mais adequadas à sua nutrição e proteção da saúde, sem minimizar a domesticação de certos animais selvagens, alguns dos quais submissos, desde então, ao controle às vezes despótico de sua vontade, quando não à engorda e ao corte para alimentá-lo e vesti-lo, a humanidade tem aprendido a conviver com a brutalidade da natureza, e até mesmo a tirar proveito de suas darwinianas leis irrevogáveis, evoluindo, quase à perfeição, na prática dessa que é a mais bela e de mais difícil cultivo dentre todas as artes: a da sobrevivência. Foi assim que passou a prever e aproveitar para a agricultura as enchentes dos rios, a utilizar a força dos ventos para o êxito da navegação ou a guiar-se no meio dos oceanos e dos desertos pelo céu estrelado. Até as pedras e sua aparente imprestabilidade despertaram a imaginação do homem das cavernas, que num primeiro momento passou a lascá-las e noutro a poli-las, para transformá-las em instrumentos de luta e labuta em sua faina diária de confrontos com a hostilidade dos elementos naturais, principalmente nos primeiros momentos de adaptação do meio humano ao meio ambiente. Mas que lições nos legaram as doenças ou a própria morte, que possam ser utilizadas vitoriosamente contra elas mesmas?
Somando somente algumas das conquistas da inteligência do homem, desde a invenção da roda e das roldanas, das armas de guerra e da pólvora, da bússola, da caravela e do motor de propulsão, até a produção em série de locomotivas e automóveis, precedida pela dos navios, sem falar nos mais diversos e sofisticados modelos de submarinos e aviões, estes logo considerados como os meios mais rápidos e seguros de transporte e locomoção, contando-se ainda com a invenção dos analgésicos, das vacinas, da anestesia, das técnicas cirúrgicas de transplantes de órgãos, sem esquecer a clonagem, já exitosamente experimentada em diversas espécies de animais (o que abre caminho para que se possa também replicar em laboratório, a qualquer momento, senão ainda os próprios corpos humanos, por inteiro, ao menos alguns de seus órgãos mais importantes), não seria justo que hoje cada um de nós esperasse muito mais em termos de longevidade e qualidade da vida? Para enriquecer ainda mais a percepção completa e detalhada de toda essa verdadeira maravilha, que dizer do mapeamento e da decodificação do DNA, da fissão nuclear do átomo e da possibilidade multiusos de sua cósmica energia? Ou do rastreamento da própria criação do universo em laboratórios de aceleração de partículas? Pode algum romance ser mais belo e comovente do que este (o da história de amor do homem com a sabedoria, muito mais cativante que ‘As mil e uma noites’)? Não é como se já tivéssemos chegado à antessala das moradas dos velhos deuses de todas as mais antigas mitologias? Mas em que pese todo esse saber-poder teórico-prático, que avança séculos em apenas dias, da engenharia de materiais (veja-se a revolução causada pela nanotecnologia) à reengenharia genética, da medicina ortomolecular à “materialização virtual” das possibilidades de teletransporte, através da manipulação das leis da eletroeletrônica (“A holografia em 3D se aproveita das propriedades ondulatórias da luz, captando-a no meio do ar para criar um objeto virtual com a mesma profundidade do real”), pergunta-se, em conclusão: apesar desses êxtases de Narciso, justificadamente embriagado pela imagem da própria beleza no espelho de água lustral da verdade em que se banha, por que a morte sempre acaba matando a vida desse soberbo homo sapiens que se vai velozmente transformando em homo deus?
Que há de errado em vivermos eternamente, ou pelo menos por mil anos, para que tenhamos de sofrer tão implacável perseguição do tempo, das doenças, que nem sabemos a que ou a quem atribuir? Por que ainda nos é vedado conhecer qualquer coisa sobre os depois e também os antes da experiência totalizadora que é a vida, conceitualmente eterna, e todavia efêmera em cada uma de suas manifestações individualizadas? Se a vida é a mais completa definição da perfeição universal, e viver, isto posto, a mais perfeita síntese do significado da prevalência do cosmos contra o caos, por que não pode durar para sempre em todos e cada um de nós, se como experiência de interesse científico, filosófico, religioso e artístico já deu certo, por sucessivos dias, meses, anos e décadas? Que defeito congênito seria esse de que padecemos, contra o qual a sabedoria humana , que pode tanto, nada pôde até agora?
Que seria um objeto, qualquer objeto, sem que houvesse um sujeito, qualquer sujeito, que o percebe e assim igualmente se percebe percebendo-o, e o delimita, e o classifica, e em tantas outras operações sensíveis, racionais e empíricas de certo modo dele se apropria, sobretudo analiticamente, transformando a inteligência e a consciência que dele passa a ter no reino do saber artístico/religioso/filosófico/científico? Por que deixa memória de si mesmo qualquer objeto, quando acaba sendo erodido pelo tempo, no pó em que lentamente se transforma (inclusive e principalmente o pó das estrelas), e de um sujeito, que tudo observa e, pela observação do todo, ou de qualquer uma de suas partes, de tudo se apossa, não sobraria, ao contrário, nada de visível ou palpável? Por que o principal ator desse espetáculo sem igual que é estar vivo deve, às vezes antes mesmo do fim da encenação, justo na hora dos aplausos, simplesmente desaparecer?
O que não pareça justo não pode ser nem bom nem verdadeiro. Seria preciso tratar-se de irremissível niilista, sobre um irracional sem cura, quem quer que fosse capaz de admitir que tudo de repente se torne absolutamente nada. Se a hipótese da criação de tudo a partir do nada costuma ofender a lógica de alguns, que dizer da hipótese muito mais contraditória da criação do nada a partir de tudo, impossibilidade ontológica absoluta? O pessimismo e o otimismo não se resumem somente a duas visões de mundo. O otimismo atuante será sempre mais capaz, salvo melhor juízo, de acenar com vantagem, logica ou ontologicamente, para qualquer homem que além de saber existir saiba também pensar, em comparação com o resignado pessimismo amargo. Quando menos, torna-se um GPS, o mais confiável possível, para qualquer viagem, física ou metafísica, que se pretenda segura e agradável no tráfego pesado das estradas da vida. Como posso chegar a um lugar que já sei não existir? De fato, é preciso crer, para que se possa esperar, seja o que for, onde quer que esteja.
Quem pode dizer, quando alguém nasce, que nele a vida já está completa? Por que então quando alguém morre deve ser considerado completamente morto? Ignoraremos de propósito que a ciência já convive, há mais de duzentos anos, com a certeza de que “Na natureza nada se perde, nada cria, tudo se transforma”? No que seria mais razoável crer, na vida ou na morte? O que seria menos irrazoável esperar? “Se o grão não morrer a planta não nasce”. A matéria desaparece porque volta a ser pura energia. A transformação parece ser o conteúdo essencial de toda e qualquer mudança. “A nuvem bebe água salgada e chove água doce”. Aqui a mágica da Ciência faz as pazes com a mística da Religião. Quem duvidar concentre-se um pouco mais, como “O Pensador” de Rodin, na meditação absolutamente profunda. Sufocando ainda na garganta “O Grito” de Munch, feche os olhos e faça silêncio absoluto dentro de si mesmo. Imagine então a dança cósmica da criação começando. Seguindo ou não qualquer tradicional cosmogonia, essa meditação transcendental abrirá caminho para um estágio de maior e mais clara capacidade de percepção. A anulação temporária dos cinco sentidos os magnifica, por mais contraditório possa isso parecer. Inesperadamente sua nova sensibilidade racionalmente o levará a conceber a diferenciação e a indiferenciação como somente o lado de dentro e o lado de um absoluto continuum.
Para ter-se uma pálida ideia da “música das esferas” que alimenta a “dança da criação” retorne-se à voz do silêncio, em seu permanente diálogo com o mistério. Os adágios da sexta, sétima, oitava e nona sinfonias de Bruckner conservam algo desse hermético concerto. Ouvi-los pode abrir a cortina do palco onde o eterno espetáculo da vida, em sua batalha infinita contra a morte, se desenrola. Dá para perceber assim, pelos ouvidos, o que os olhos negam. Na conclusão do quarto movimento da nona de Mahler, que nela faz questão de homenagear seu antigo mestre, citando-o na abertura, talvez a percepção seja ainda mais exata quanto ao “horizonte de eventos” em que tudo e nada, já diferenciados, de novo retornam à plenitude da indiferenciação. Num ou noutro caso a “matéria sonora” renuncia à sua própria identidade para poder fazer parte do silêncio total, no qual todos os sons se somam e se subtraem, multiplicando-se ou dividindo-se. Como se obedecesse a uma contagem progressiva ou regressiva automática, como a de um coração pulsante dentro do cérebro de cada específica sensibilidade humana, outra vez tudo é um. Lembra-me um rio que irresignado perde, lentamente, sua necessária perenidade, como tantos na geografia nordestina, ou um outro que com relutância luta ainda, e sempre, para não se perder no mar completamente. Já houve quem conseguisse pintar com palavras o quadro definitivo dessa misteriosa mudança: “… E o rio morrendo e resistindo, morrendo e resistindo, resistindo e morrendo”.
As realidades e as ideias sobre o todo e cada uma de suas partes parecem às vezes tão contraditórias entre si que acabam ensejando, ante o problema ou o mistério da existência, a hipótese da desnecessária divisão do “um” em “dois”, imaginando-se assim melhor resolvê-los. Daí por diante, a pitagórica sobre cartesiana operação geométrica que é compreendê-lo, já é a própria necessidade de repetir-se, indefinidamente. Surge assim do “uno” o “múltiplo”, a década da unidade. Substancialmente, no entanto, o diverso não passaria de um conjunto de manifestações “para si próprio” do “em si mesmo”. Os sistemas de pensamento podem, portanto, tentar reconciliar-se também, de uma vez por todas, conquanto permaneçam, em muitos aspectos, ainda contraditórios. Que prova maior se teria do universo do que o multiverso? No sentido oposto, urge, porém, que as divisões cessem, porque tudo parece já ter sido dito. Pode parecer forçado dar exemplos. Mas quando Zoroastro afirma, entre os séculos VII e VI antes de Cristo, que “O que vale mais em qualquer trabalho é a dedicação do trabalhador” não já estaria, sem poder saber e sobretudo sem poder querer, antecipando Marx, em sua “Mais valia”? O “Conhece-te a ti mesmo” que o Oráculo de Delfos ensinou a Sócrates há dois mil e quinhentos anos, lição de vida que ele por sua vez passou a ministrar diariamente na escola do mundo, que ainda não a aprendeu (aprendizagem essa em consequência da qual, por coerência consigo mesmo, ele iria perder a própria vida), não já seria uma antecipação do “Torna-te quem tu és” de Nietzsche?
Jung, o genial discípulo de Freud, que do mestre dissentiu, no entanto, porque não atribuía importância absoluta às pulsões sexuais como fundamento único da Psicanálise (daí o porquê de ter sido o fundador da Psicologia Analítica), escreveu dois livros fundamentais que o Ocidente precisa reler: – “Resposta a Jó” e “Sete Sermões aos Mortos”. Este, principalmente, começa assim (Primeiro Sermão): “Os mortos voltaram de Jerusalém, onde não encontraram o que estavam procurando, e pediram para serem admitidos à minha presença, exigindo serem por mim instruídos. Então eu os instruí. “Ouvi: eu começo com o Nada. Nada é o mesmo que plenitude. No estado de infinito, plenitude é o mesmo que vazio. O Nada é ao mesmo tempo vazio e pleno. Pode-se, é claro, afirmar alguma outra coisa a respeito do Nada, como por exemplo que ele seria branco ou negro, existente ou inexistente. Mas aquilo que é infinito e eterno não possui qualidades, porque contém todas as qualidades. O Nada ou plenitude é chamado por nós de PLEROMA. Nele pensamento e existência cessam, porque o eterno é desprovido de qualidades. Nele não existe ninguém, porque se existisse alguém este se diferenciaria do PLEROMA. E possuiria qualidades que dele o distinguiriam. No PLEROMA não existe nada e existe tudo. Não é bom pensar sobre o PLEROMA, pois fazê-lo significaria dissolução.
A Igreja Ortodoxa Grega traduz esse raríssimo estado de estar do ser, ao existir em plenitude, pela palavra grega PLEROMA. Quando traduz a Carta de Paulo, 2,9, aos Colossenses, chega mesmo a enfatizar o sentido esotérico do texto, para reconciliar espírito e a letra, seu sentido esotérico. Dir-se-ia então que o décimo terceiro integrante do Colégio Apostólico do Cristianismo estaria se referindo ao PLEROMA quando afirma a “plenitude da divindade” de Cristo? Seria o Apóstolo dos Gentios um Gnóstico? O espanto não nos assusta. Que seria o Gnosticismo senão uma bela tentativa de concertação já tardia entre as verdades da Igreja Católica e as de muitas das chamadas Heresias que de certo modo tentaram corrigi-la no curso dos séculos? Por que não valeria a pena igualmente qualquer tentativa de refazer o diálogo há muito interrompido entre o Catolicismo e o Protestantismo, ou entre o Cristianismo e o Judaísmo, o Islamismo ou o Budismo? No terreno da Filosofia, que nasceu do espanto, não haveria de ser mais belamente espantoso ver também totalmente reconciliados Parmênides e Heráclito, Aristóteles e Platão, Zenão Cício e Epicuro, São Tomaz e Santo Agostinho, Descartes e Bacon, Voltaire e Leibniz, Hume e Kant, Schopenhauer e Hegel, Bachelard e Bergson, Popper e Wittgenstein?
Spinoza lentamente foi se tornando para muitos o maior filósofo. Primeiro, porque assim sempre foi considerado por grande parte dos maiores cientistas modernos. Segundo, porque foi exemplar como homem. Terceiro, por ter dito verdades tão fundamentais no campo da Filosofia em si como no da Teologia, verdades que, como era de esperar, lhe valeram duas excomunhões absolutamente injustas: a dos judeus e a dos cristãos. Entre os pensadores que pensaram mais profundamente sobre Deus nenhum se lhe compara. Ao diagnosticar que “a mente humana não pode absolutamente ser destruída com a morte” tornou-se líder de uma nova vanguarda do pensamento. Que homem extraordinário! “É chegado o momento de passarmos a considerar o que pertence à duração da mente sem relação com o corpo”.
Negando assim que a matéria tenha realidade de massa divisível, finita e local (a extensão cartesiana), o filósofo judeu luso- holandês (apud Marilena Chauí, in “A Nervura do Real), sabiamente afirma (1) a espiritualidade do que é material; a imanência de Deus ao mundo (2), por meio do intelecto infinito imediato (primeira emanação divina, correspondendo exatamente ao que a tradição cabalística nomeava como Adão Kadmon, Messias ou Cristo, a partir da tradição gnóstica, neoplatônica e joanina da pré-existência do Logos criador, isto é, o Verbo, como Filho Unigênito de seu Pai Divino, Homem Celeste, Pastor e Paráclito. Compare-se então o que ele diz com o que disseram Moisés e João Evangelista a respeito: “No princípio Adonai Eloim criou o Céu e a Terra. A Terra era sem forma e vazia e o espírito de Deus pairava sobre a face do abismo Então Deus disse: Faça-se a luz”. “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele e nada do que seria feito sem Ele se fez. Nele estava a vida e a vida é a luz dos homens”; a diferença de essência entre Deus e o mundo (3), pois a imanência não identifica (contrariamente ao que afirmam de má fé os que sem refletir se opõem ao Panteísmo), Natura Naturans e Natura Naturata. Deus, o absoluto inefável (sujeito absolutamente infinito da criação eterna objetiva), é o verdadeiro e único En-Soph, potência eterna e infinita que engendra o mundo por emanação, sem que o criador, portanto, coincida nem com a criação nem com a criatura, conquanto delas nunca se separe; o mundo, como ser vivo ou animado (“Todas as coisas são animadas em graus diversos”, cf. primeira parte da Ética), vive apenas porque Deus é o ímpeto criador de que tudo é gerado (4), o espírito e a matéria especialmente; (5) Spinoza chama o amor intelectual da alma do mundo por Deus de glória, como nos Livros Santos da Cabala, nos quais Kabod, a glória, é o sinal da Divina Presença: a Shekinah.
Spinoza (e uma multidão de pensadores e cientistas antes e depois dele), a Cabala (que atribui a cada uma das 304.805 letras das palavras hebraicas que compõem a Torá significados ocultos sobre Deus e as leis do universo), a Gnose Cristã ou a Muçulmana, a Bíblia, o Alcorão, os Vedas, todos os livros sagrados de todas as religiões do mundo não podem estar errados. A vida vive mesmo depois da morte. Não tenho vergonha de dizer que assim creio e espero. “Aquele que crê em mim ainda que esteja morto viverá”. Como se vê, Flávio Luiz, que era um homem de fé, decerto ainda está vivo. Como não teve tempo de despedir-se ao partir imagino que se o tivesse tido repetiria Paulo, em II Timóteo, 4/7-8: “Quanto a mim já estou sendo derramado por libação… Combati o bom combate, terminei minha carreira e guardei a fé”.