“Quanto à fome, foram necessárias duas terríveis guerras mundiais e uma tremenda revolução social – a revolução russa – nas quais pereceram dezessete milhões de criaturas, dos quais doze milhões de fome, para que a civilização ocidental acordasse do seu cômodo sonho e se apercebesse de que a fome é uma realidade demasiado gritante e extensa, para ser tapada com uma peneira aos olhos do mundo”.
O desafio de ser mãe solo
Bruna Gomes, moradora da Comunidade do Chiclete, no bairro da Iputinga, no Recife, vive uma batalha diária junto com a mãe Diulinda Gomes, para levar alimentos para dentro de casa. Mãe solo de dois filhos, um menino de seis e uma menina de nove anos, Bruna vive atualmente com o Auxílio Emergencial de R$375 dela e o de R$150 da mãe.
Paralelamente, a mãe solo faz alguns “bicos” para conseguir complementar a renda. Bruna e a mãe moram uma ao lado da outra e sempre estão se ajudando.
“Aqui na comunidade a situação é bem difícil, essa comunidade sofre muito com deficiência alimentar, tem gente aqui que não consegue se alimentar nenhuma das três vezes por dia e se conseguir, é porque algum vizinho tem um pouco, aí divide. Tem muita mãe e pai de família passando por situações horríveis. Tem muita criança passando por necessidade aqui dentro, muita mãe chorando, porque dá o café da manhã, não sabe se vai poder dar o almoço, um café à noite. Está bem difícil”, ressaltou Bruna.
Cenário brasileiro
De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), como parte do projeto VigiSAN, 55,2% (116,8 milhões de brasileiros) convivem com a insegurança alimentar e não têm acesso pleno e permanente a alimentos, um aumento de 54% com relação a 2018.
Desses, 43,4 milhões (20,5% da população) apresentam insegurança alimentar moderada ou grave e 19,1 milhões (9%) estão com insegurança alimentar grave e passam fome no seu dia a dia. A pesquisa foi realizada em 2020 e contemplou 2.180 domicílios nas cinco regiões do país, em áreas urbanas e rurais.
“A segurança ou a insegurança alimentar não é uma questão de causa única, é o que a gente chama de um problema complexo multifatorial. Os estudos de Josué de Castro, a própria literatura e as artes trazendo Raquel de Queiroz e Candido Portinari retrataram, ao longo da história do nosso País, a situação de exclusão social e fome de grande parcela da população. A fome é um fenômeno complexo e outros fatores menos visíveis e/ou abrangentes também pesam, mas essas questões da gestão econômica, social e o histórico secular de relações econômicas para/com e dentro da região pesam bastante nessa equação”, explicou a professora do Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro da Rede Penssan, Fernanda Tavares.
“Quando a gente avalia a insegurança alimentar, a gente utiliza a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) e conseguimos avaliar esses diversos níveis. A Insegurança Alimentar Leve está muito ligada à essa preocupação que as pessoas possam ter com relação ao acesso do alimento ou não no seu dia a dia, porque a alimentação não só está atrelada ao acesso físico do alimento, mas também ao acesso econômico e a outros bens, como a terra. Inclusive, quando a gente fala de Insegurança Alimentar Leve está presente a diminuição da qualidade da alimentação da população ou do grupo”, explicou.
“Na moderada e grave, nós falamos em uma redução tanto qualitativa, como quantitativa. Só que no caso da moderada, atinge principalmente a população adulta do domicílio. A grave atinge as crianças que moram na casa. Se a gente for considerar a Insegurança Alimentar Moderada e Grave, já percebemos uma condição de fome”, complementou Thalita.
Ainda de acordo com a nutricionista, a criação de políticas públicas é o pontapé inicial para a diminuição desse quadro no País.
“Para a gente realmente retomar uma agenda de promoção da Segurança Alimentar e Nutricional da nossa população aqui no Brasil, é necessário criar políticas públicas, investir e criar programas. Inicialmente, uma coisa muito importante seria a gente retornar com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que é um órgão que lida diretamente com o presidente da República e com os demais órgãos federais, para justamente elaborar políticas e colocá-las em prática”, destacou.
“Além disso, é importante também o retorno do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Além disso, é preciso financiar e ter subsídios maiores para a produção dos pequenos agricultores familiares, fomentar mais a agricultura agroecológica, reduzir o consumo de agrotóxicos, criar empregos e realizar a manutenção do Auxílio Emergencial tornando até como uma renda mínima e manter o programa Bolsa Família, investindo cada vez”, pontuou, Thalita.
Reciclagem como forma de sustento
A também mãe solo Cícera Mikaely mora com a sua filha de um ano também na Comunidade do Chiclete, na Iputinga. Para conseguir o sustento diário para ela e sua filha, Cícera trabalha em um depósito de reciclagem, mas sem carteira assinada. Além disso, conta com o auxílio do Bolsa Família, no valor de R$130 e do Auxílio Emergencial de R$375.
“Eu pego às 08h e largo às 18h, de segunda a sábado e trabalho de tudo um pouco no depósito de reciclagem, eu separo os materiais, os preços, e na mesma hora eu peso, para poder não deixar faltar as coisas da minha filha, que a minha filha só tem eu por ela, o pai dela não dá nada, nem a família dele, aí eu trabalho para sustentar ela. Eu recebo R$150 todo sábado na reciclagem”, pontuou.
“A necessidade vem quando falta fralda, leite pra eu dar para a minha filha, às vezes não tem nada dentro do armário. Às vezes eu fico pensando se comer de manhã, de tarde não vai ter ou se comer de tarde, de noite não vai ter. Esse é o pensamento de todos nós que criamos filhos sozinhas. Eu sou mãe solteira e eu cuido da minha só. Os preços no mercado também aumentaram muito. Você ia com R$50 no mercado você trazia um prato de carne, um prato de galinha, hoje em dia você tem que comer salsichinha, ovo, carne de hambúrguer, porque o dinheiro não dá pra comprar a carne mais”, disse Cícera.
Situação mais grave no Nordeste
No Nordeste, de acordo com a pesquisa realizada pela Rede Penssan, a situação se deu de forma ainda mais grave e o índice de Insegurança Alimentar ficou acima dos 70% na região. Já a Insegurança Alimentar grave (a fome) afeta 13,8% das casas do Nordeste, quase 7,7 milhões de pessoas sem ter o que comer diariamente.
Segundo a professora Fernanda Tavares, historicamente, o Nordeste é uma região mais vulnerável, que sempre teve um percentual de pobreza e extrema pobreza maior, principalmente nas áreas rurais.
“Os dados da Vigisan mostram que as áreas rurais, com ênfase nos agricultores familiares, são os mais afetados pela Insegurança Alimentar, em especial nas formas moderada e grave. Então junta o desmonte e cortes de recursos para programas importantes para a agricultura familiar nos últimos 5 anos, o que foi agravado na pandemia, com ênfase no PAA; uma seca superada mais recente que afetou muito a capacidade de produção deles entre 2010 e 2015, com riscos de novas secas; o histórico de baixo investimento na região e nas condições de convivência com o semiárido, uma alta proporção de desemprego também nas áreas urbanas, para onde muitos “fogem” tentando melhores condições de vida; e a inflação de alimentos básicos prolongada em que estamos”, destacou Fernanda.
Problemas de saúde e a Insegurança Alimentar
Moradora da Comunidade do Sítio, também conhecida como Ponte Quebrada, no bairro da Iputinga, no Recife, Fernanda Patrícia é mãe de quatro filhos, dois homens e duas mulheres. A filha mais nova de 14 anos é a única que mora com ela. Fernanda vive do Bolsa Família que diminuiu para R$41, além da ajuda que o pai da filha oferece no valor R$150 e do Auxílio Emergencial.
“Com o Auxílio Emergencial comprei esse pedacinho de terra e fiz esse barraquinho, e estou aqui faz um ano e cinco meses, eu e minha filha. Tenho um filho preso, aí a situação fica mais difícil ainda, porque toda semana tem que levar coisa pra ele, aí estou recebendo há seis meses uma cestinha e levo pra ele, quando não estou precisando, quando eu estou, geralmente eu fico, além disso, me ajudam na igreja quando podem”, explicou Fernanda.
“Normalmente, a nossa alimentação é um cuscuz, de meio-dia é um feijão, arroz e macarrão com ovo, de noite cuscuz e quando arrumo dinheirinho para comprar um pão, eu compro. A doutora me mandou fazer dieta, porque eu tenho diabetes, colesterol e pressão alta, e eu posso fazer dieta? A alimentação de dieta é mais cara do que o normal. Aí eu nem faço. É Deus que está me sustentando para estar de pé”, complementou.
Como minimizar esse cenário
Com ações nas comunidades e doações de cestas básicas durante a pandemia, a Central Única das Favelas (Cufa) auxilia no enfrentamento ao problema da Insegurança Alimentar observada em todo o País. De acordo com a empreendedora social e presidente da Cufa em Pernambuco, Altamiza Melo, a organização realiza ações constantes nas comunidades pernambucanas.
“A gente tem uma ação constante de arrecadação de cestas básicas e há três meses fechamos uma parceria com a Vale do Brasil, justamente porque Pernambuco é um Estado que está nos primeiros rankings do Mapa da Fome, e nós conseguimos fechar essa parceria onde estamos atendendo até dezembro 6.800 famílias nas favelas pernambucanas, com cestas básicas de 20kg. Quando a gente fala de Pernambuco, a gente pensa também para além da Região Metropolitana do Recife. Além do impacto da Covid, muitos municípios estão sofrendo com a seca e a pandemia da fome que vem se alastrando”, destacou Altamiza.
De acordo com a secretária de Desenvolvimento Social, Direitos Humanos, Juventude e Políticas sobre Drogas do Recife, Ana Rita Suassuna, algumas ações foram realizadas na cidade do Recife durante o período de pandemia.
“Desde o início da pandemia em 2020, a gente começou com algumas ações, com um olhar para aqueles públicos mais vulneráveis dentro da cidade. Uma das medidas foi a compra de 200 mil cestas básicas naquele momento, além disso, a gente fez uma campanha com a sociedade civil para a arrecadação das cestas. Também tivemos a estratégia de abrir restaurantes para atender a população em situação de rua e em vulnerabilidade. Na assistência social, a gente abriu um abrigo para atender as pessoas idosas em situação de rua, oferecendo seis refeições por dia. A gente começou a ampliar as nossas estratégias e lançamos o “Recife Acolhe” e as duas estratégias mais importantes são a empregabilidade, para a formação dessa população mais vulnerável e a segurança alimentar”, explicou.
Segundo a superintendente das Ações de Segurança Alimentar e Nutricional do Estado, Mariana Suassuna, além das ações já realizadas, Pernambuco criou um plano específico de enfrentamento à Insegurança Alimentar no contexto da pandemia.
“A gente fez um Plano Estadual de Enfrentamento à Insegurança Alimentar e Nutricional Frente a Pandemia da Covid-19 e no fim do mês passado a gente enviou para o Ministério Público a versão final composta de ações que a gente já fazia, ações que foram ampliadas por conta da pandemia e ações novas que foram criadas em função da pandemia. São ações que foram distribuídas em quatro eixos: acesso aos alimentos e à água, assistência e inclusão social, fomento e geração de renda e acesso às ações de saúde, que são fundamentais. Esse plano não é estático, ele é um crescente. A gente está sempre pensando em saídas e conseguir com o recurso que for possível para essas iniciativas e atender essas pessoas”, destacou.
Cozinhar no carvão para economizar
Marluce Arlinda Maria tem 55 anos e mora na Comunidade Roda de Fogo, no bairro dos Torrões. Mensalmente, Marluce recebe R$150 do Auxílio Emergencial e R$85 do Bolsa Família. Para complementar a renda e alimentação, também vende buchas e recebe todo mês uma cesta básica da Cufa. Na casa, moram ela, o marido, as duas netas e a filha de criação. Marluce tem o costume de cozinhar no carvão para economizar o gás de cozinha.
“Tem um menino que trabalha na granja, que o ovo rachado custa R$8 e se eu estiver com dinheiro hoje, eu pago hoje, se eu não tiver, pago amanhã, aí eu compro duas, três grades de ovos por semana, quando dá, eu compro R$10 de charque, quando não tem a gente se vira no ovo e na salsichinha. Quando eu recebo o auxílio vou lembrando logo de pagar a energia e o trocadinho eu mando a menina comprar alguma coisa. Eu cozinho o mais pesado no carvão e esquento no gás. Eu vejo essa necessidade porque o gás está muito caro, tem hora que eu tenho e hora que eu não tenho, são dois botijões de gás para passar um mês. A gente está se virando como pode”, pontuou Marluce.
Por: Folha de Pernambuco