Margareth Menezes está encostada num móvel da sala do apartamento de Gilberto Gil, em Salvador, enquanto Daniela Mercury concentra as atenções soltando a voz ao redor de uma mesa. Maga, como é carinhosamente apelidada pelos fãs, só se aproxima quando alguém puxa uma cadeira para que se junte ao coro de “Pai e mãe”, canção de Gil.
A cena aconteceu no início do mês em um sarau informal e diz muito sobre a personalidade da cantora baiana de 59 anos, famosa por hits como “Faraó” e “Elegibô” e de importância seminal para o Axé Music. Por trás da artista, de força imensa no palco, está a discrição em pessoa. Alguém que “chega devagar” e nunca foi “de se jogar”. Tudo muda, no entanto, quando ela sobe na ribalta e solta a vigorosa voz grave.
Daniela Mercury:‘O Brasil nunca precisou tanto de axé’
É o que fará no próximo dia 21, data em que o Baile da Maga chega a Salvador natal de Margareth (mais precisamente no Sollar Baía, no Museu de Arte Moderna) pela primeira vez. A apresentação, que celebra a energia do carnaval e conta com sucessos como “Dandalunda”, marca seu retorno oficial ao palco pós-pandemia.
— É um show dançante para matar a saudade, agora que dá para abraçar. Vamos reanimar a nossa energia, porque temos que ser feliz em algum momento, né? — diz a criadora do estilo musical afropop brasileiro, que mistura elementos africanos, brasileiros e pop.
A apresentação também é parte das comemorações pelos 35 anos de carreira da artista que, em fevereiro, lançou “Terra Afefé” em parceria com Carlinhos Brown. A canção estará em seu novo disco, previsto para o segundo semestre. Produzido em parceria com Russo Passapusso, o álbum terá nove composições. Músicas próprias, de novos artistas e de nomes importantes para a carreira de Margareth.
Turnê, biografia escrita por Djamila Ribeiro e um documentário dirigido por Joelma Oliveira Gonzaga também estão em andamento. O filme abordará a trajetória de Margareth que, no ano passado foi reconhecida como uma das 100 personalidades negras mais influentes do mundo pela Mipad 100 (instituição chancelada pela ONU) e indicada pela quarta vez ao Grammy.
Em 2021, a artista também foi nomeada embaixadora da cultura popular do Brasil pela Unesco, eleita uma das cinco mulheres inspiradoras no Latin America Lifetime Award e protagonista do seriado “Casa da vó”. O programa, da plataforma Wolo TV, a primeira no país com conteúdo focado na população negra, está sendo exibido em Portugal e em países de língua portuguesa da África.
Margareth, que ainda se dedica ao projeto social Fábrica Cultural na Península de Itapagipe, complexo de favelas onde nasceu, afirma que a culpa de não ter tido a projeção de Daniela e Ivete é do racismo estrutural e lembra a dor de um aborto espontâneo.
A celebração pelos seus 35 anos de carreira começou com o lançamento de “Terra Afefé”. A canção fala sobre a revolução que a mulher faz a partir do momento que começa a se movimentar e a perceber o seu poder. Quando você tomou consciência do seu?
Minha vida foi luta o tempo todo. Em algum momento, vi que tinha que criar a minha identidade em relação à música. “Maga é o que?” Afropop brasileiro! Comecei a defender essa identidade musical, porque o axé music foi um rótulo de generalização. Vi que a música que eu fazia tinha todo o meu legado. Sempre gostei de percussão, do meu histórico ancestral, mas também da coisa urbana. Havia toda uma urbanidade que me influenciava: Tropicália, Belchior, Fagner, João Gilberto, Dorival Caymmi, Rita Lee, Elis Regina, Ney Matogrosso…
Me via nisso tudo, mas com o tambor sempre tocando no meu coração. É a base do meu talento, do meu legado, das coisas que tenho dentro de mim. Aí vem o afropop brasileiro, o estilo, Gil, Caetano, Ijexá, os blocos afro. Abri meu coração para receber tudo isso. Está dentro do axé music, mas também é uma conexão com o mundo, com esse caldeirão que significa worl music.
Afefé é o vento forte que acompanha as aparições de Iansã na mitologia afro-brasileira. Isso é muito forte por tudo que significa, a força feminina, o vento que movimenta a atmosfera, o mar, leva coisa ruins, traz coisas novas, as voltas que o mundo dá ao redor do planeta. “Terra Afefé” é a energia que concentra tudo isso, a renovação.
“Estrela do mar”, para lançar seus discos. Ao se ver sem patrocínio para fazer live no carnaval da pandemia, pôs a boca no trombone nas redes sociais e, rapidinho, foi convidada para um projeto. Margareth não é de se conformar com o “não”? Usa obstáculos que poderiam desmotivar para se reinventar?
Acredito que exista saída enquanto estivermos vivos, que a gente tem que procurar porque tem o “sim” em algum lugar. Pode ficar puto, xingar, se sentir deixado de lado, ir lá no fundo do poço, mas tem que voltar, a gente não pode aceitar o não.
Apesar de você ter vindo antes e de ser seminal para a música baiana, Daniela Mercury e Ivete Sangalo tiveram mais projeção. Por que?
São histórias de patamares diferentes e existem aí várias coisas dentro do mesmo pacote. Tem a questão racial, o racismo estrutural da nossa sociedade. A isso, soma-se a estética, o padrão da televisão. Nós, mulheres artistas negras, não tínhamos as mesmas oportunidades, aberturas, convites.
Outro diferencial é que Daniela e Ivete, mulheres fantásticas e grandes talentos com contribuições enormes na cultura, tiveram a oportunidade de participar de blocos com estrutura, já com a logística arrumada, patrocinadores. Não tinham as mesmas preocupações que eu, que venho da música e de trio independente.
Por outro lado, tive a sagacidade de conseguir o meu espaço dentro disso tudo. Fui uma artista inquieta, sempre gostei de fazer coisas diferentes e sobrevivi a uma situação brutal, fiquei oito anos sem gravadora (depois do disco “Luz dourada”, de 1993, e até o “Maga – Afropop brasileiro”, de 2001, lançado em parceria com a Universal). Mesmo assim, fiz uma carreira de destaque aqui e fora do Brasil. Continuei os projetos e pude atravessar o deserto.
Mas consigo entender cada coisa em seu lugar sem ferir a minha relação com elas, por quem tenho muito respeito. Daniela, inclusive, vai fazer participação no meu show e sempre me convida também.
Pode contar algo que estará na sua biografia? Vai falar sobre a relação com seus pais?
Estou feliz de poder realizar isso. Com o tempo, a gente vai percebendo a importância de contarmos nossa própria história. Por mais que as narrativas alheias sejam bacanas, sempre vai faltar o sentimento de quem viveu. Tenho momentos bons e ruins na carreira, um sentimento diante das coisas que vivi, e quero deixar isso registrado.
Vou falar da ideia dos Blocos dos Mascarados, do movimento afropop brasileiro… Foram ideias criadas não para proveito próprio, mas para resgatar o lúdico, a alegria, criar espaços de diversidade e fortalecer alguns apelos em relação ao espaço dentro do carnaval.
E também para aproveitar esse espaço para mostrar a minha pesquisa musical.Vou falar dos meus pais, pessoas de origem humilde. Ele, que era motorista, aprendeu a ler e a dirigir sozinho. Ela era, cozinheira, costureira… Os dois eram muito simples, mas com uma visão de vida que favoreceu muito a gente. Viemos de família pobre, mas não chegamos a passar necessidade como a maioria das pessoas negras e pobres. Tive uma relação dura com meu pai. Ele era radical em tudo. Depois, a gente pôde se resgatar um pouco e pude viver coisas melhores com ele.
O fato de você ser artista o incomodava?
Nunca foi muito bem aceito por ele. Meu pai providenciou o estudo para a gente. Era escola pública, mas ele não deixava faltar livros, fazia um esforço muito grande. Para a cabeça dele, me ver num grupo de teatro… E sempre fui muito livre na maneira de me relacionar, na minha sexualidade, não presto satisfação em relação a isso, nunca prestei. E meu pai era muito agressivo nessas questões.
Mas é importante esse lugar de entender qual era a condição dos nossos pais, ao que tiveram acesso. Essa reflexão chegou para mim a tempo e foi importante para olhar para frente, mais para o tempo que a gente tinha do que ficar sofrendo por coisas do passado.
Nesses conflitos de família, alguém tem que ceder. E se você muda a maneira de se comportar abre uma janela para recuperar o laço que está se partindo. Podemos manifestar o desacordo fora da agressividade, o que não significa ter menos razão.
Essa reflexão serve também para esses tempos de ódio generalizado entre as pessoas, né?
É o que precisamos fazer hoje. Nós brasileiros, estamos passando por muitos conflitos, sem humanizar nada. As pessoas estão se armando para matar quem? O outro que não concorda com ele? Por causa de que? Quem será a vítima desse povo armado? Somos seres humanos, vivemos num país com diversidade de sentimentos e etnias.
Você completa 60 anos esse ano. Se sente com essa idade?
Menina, de jeito nenhum! Mas me importo é com vitalidade. Nessa questão da idade, a minha geração conseguiu fazer uma coisa interessante que é dar mais longevidade, se manter ativo. Hoje, a gente sabe que o corpo humano aguenta muito mais se cuidar da saúde, tiver qualidade de vida.
O negócio é não comprar muito essa questão de “tô ficando velha”. Porque, aí, começa a envergar. Acho que isso vem de dentro. Me sinto bem, com saúde, ativa. Meus mestres estão aí produzindo, Gil, Caetano, muita gente boa. Dona Elza (Soares) partiu, mas dois dias antes ainda estrava trabalhando.
E essa sexualidade livre que você mencionou… Continua?
Hoje sou mais de ir para o cinema, ver televisão (risos). Sou uma pessoa sadia em relação à sexualidade, estou de acordo com o andamento da minha carroça (risos). Acho que quanto mais madura com a vida, a sexualidade vai tendo outro lugar. O valor das coisas, de ter alguém ou não ter. Acho que passa muito por construir sua história nas relações.
Sempre fui tranquila. A gente tem que ser feliz e não ficar carregando mala sem alça, né? Relação não é só momento de prazer e felicidade, também é dialogar, refletir sobre a individualidades. Às vezes, a gente sofre com o que pessoa está fazendo, mas para que esquentar a cabeça com isso?
Você disse uma vez, en passant, que engravidou e não pariu. O que aconteceu? Ficou tristeza em relação a isso?
Naquele momento, sim. Não foi legal. Era uma gravidez tardia, estava entre 45 e 50 anos. Foi logo no comecinho. Aquilo me alimentava, eu queria. Não é que eu não quis mais, mas esse acontecimento foi dolorido, a gente ficou triste. Não persegui mais esse sonho. Mas não tenho sofrimento.
Naquele sarau na casa do Gil quando nos encontramos, pude observar o quanto você, fora do palco, é discreta, econômica até nos movimentos. É um pouco desconfiada também?
É só jeito de corpo. Sou assim mesmo. Quando vou para o palco ou começo a ficar à vontade, tenho outras expressões. Mas tenho um jeito de chegar nos lugares, para falar com as pessoas, chego devagar. Sou mais na minha. Sou uma pessoa tímida. É da minha natureza, nunca fui de me jogar.
Me contaram que está no meio de uma transição de cabelo. Vem novidade por aí?
Tirei as tranças para pintar e hidratar o cabelo. Estou nesse estudo para ver o que vou fazer. Gosto de trança, mas seria bom uma novidade. Sou libriana (risos), é fogo para decidir… Analiso de um jeito, de outro…
Você está no elenco da série Luiz Fernando Carvalho sobre a Independência do Brasil, que partirá do ponto de vista dos excluídos, como negros e mulheres. Qual é a importância de apresentar outras narrativas sobre essa história?
Precisamos fazer isso para que nós, brasileiros, entendamos por que as coisas são desse jeito e como podemos mudá-las. Foi uma perversidade o que aconteceu com o povo negro no Brasil, a maneira como as pessoas foram tiradas da África e o tempo que durou. Pensa no desespero que foram dois anos de pandemia e imagina 300 e tantos anos submetendo vidas humanas à escravidão…
Isso suscitou muito desgaste, desequilíbrio emocional. Quando a dominação se dá, é imposta em cima de mecanismos de sofrimento, de desqualificar, de humilhação. Você quebra o espírito, a verve da pessoa. Isso foi imposto ao povo negro no Brasil. Quando se conhecesse mais sobre essa história, vem a gana de sair dessa situação, principalmente, essa nova geração com mais acesso à informação. Começam a resgatar as religiões de matriz africana, a não aceitar certas coisas.
Isso não é um problema de branco e preto, mas do Estado que precisa fazer a reparação que não foi feita na Abolição. Não houve indenização, ao contrário, os donos de escravos é que foram indenizados. As pessoas foram deixadas a esmo para morrer. Durante esse tempo de penúria, de falta de visão, como houve para outros imigrantes que vieram, há ainda uma dívida história a ser reparada. Por isso, a necessidade de cotas e políticas públicas justas para haver democracia.
Você cunhou a expressão “máquina do privilégio”, como define o favorecimento a artistas brancos. O que diria a quem afirma que isso é “mimimi”?
As pessoas dizem que reclamamos muito. Bicho, não é reclamar, não é criar polêmica, é uma reflexão sobre a história real de um país que a gente precisa pensar para que a coisa comece a ter outro rumo. É fácil para quem não sente na pele, a gente precisa falar que isso dói. Não sou uma pessoa que se coloca no lugar de vítima. Estou falando de uma estrutura que faz mal a um número enorme de pessoas.
Precisamos construir uma outra forma de contemplar todos os brasileiros, ter representatividade do povo negro em todos os postos de poder, compartilhar das coisas boas é um direito nosso que nascemos nesse solo e somos afrobrasileiros, nosso lugar precisa ser reconhecido. Nossos antepassados foram trazidos para cá e o legado é muito positivo para o Brasil. Porque é bom na hora do samba, da comida e na hora de reconhecer direito não é bom?
O Brasil a valoriza como merece?
O Brasil não valoriza o povo como merece. O cidadão brasileiro precisa reconhecer o valor do próprio povo, da cultura, da arte, das potencialidades, da ciência, das pesquisas do Brasil. Não é sobre mim, pois quando olho a minha história, vejo que é o povo do Brasil que me sustenta. Estou viva até hoje porque tenho fãs aqui (Salvador), no Rio, em São Paulo. Viajo o Brasil fazendo shows. Estou falando de uma estrutura racista, mas não posso dizer que não tenho reconhecimento do povo brasileiro.
Acha que cantoras negras da cena atual, como Larissa Luz, Luedji Luna e Xênia França já vem com a resistência no DNA? Não que você não tivesse, mas talvez hoje haja uma consciência mais generalizada sobre a importância de se colocar… Ao mesmo tempo que você é inspiração, aprende com elas também?
Essa galera vem com maiores oportunidades, conquistadas à base de muita luta e história das artistas que vieram antes. Temos Márcia Short, Sandra de Sá e todas as mulheres artistas negras construíram algum legado para essa geração nova. Não veio de bandeja. Hoje, elas têm acesso a outras ferramentas, como as redes sociais, que conseguem gerar uma comunicação direta com o público.
Vemos influencers que têm linguagens certas, maneira de ganhar mais seguidores. Nós artistas temos a nossa arte, as pessoas que nos seguem estão ali em função do que a gente construiu. E tem Ludmilla, Iza, artistas com muitos seguidores, e acho que tem que ser assim mesmo para chegar aos lugares.
E com certeza, a partir do momento em que se tem mais acesso e se conhece a história do nosso povo, o approach é muito mais firme.
Você disse outro dia, na gravação do programa “Por acaso”, que quando as pesquisas dos blocos afro desaguaram em músicas sobre histórias positivas do povo negro e outros povos foi uma verdadeira revolução… Pode falar um pouquinho sobre isso?
Foi uma luz. E ela veio de todas as ações que nos trouxeram referências positivas ao longo desse tempo todo de luta. Os terreiros de candomblé, as mães de santo, os blocos afro são guardadores da memória do povo, assim como as escolas de samba.
A partir daí é que se constrói memória e referências para reagir, para se ter autoestima. Não esquecemos quem veio antes, revisitamos a nossa ancestralidade. Todo ser humano precisa ter essa busca, conhecer a história de sua família de alguma maneira. Perguntar para pai, mãe, avó.
Para nós, negros, é mais difícil por conta de como as coisas aconteceram. Mas a gente busca, começando pelos significados das palavras nas línguas de África. Tudo isso é fortalecedor. Inclusive, ver a história antes da escravidão. Nem todos os povos da África foram escravizados. Tem muita coisa para conhecer. Muita coisa nasceu ali, muita ciência. A origem de muitas coisas positivas vem da África.
Por: O Globo