BRASIL

Aos poucos, Bezerra da Silva é apagado pelo politicamente correto

Sambista dos mais populares entre o início dos anos 80 e final dos 90, vendedor de, até onde se contabilizou, três milhões de discos, ex-morador de rua, ex-pintor de parede e inquilino de um barraco no Morro do Cantagalo por 15 anos, Bezerra da Silva passa por um silencioso processo de apagamento. Muitos dos sambas que cantou em seus 28 discos, identificados como apologistas da bandidagem e da misoginia, são patrulhados por um politicamente correto recrudescido por justas causas nas duas últimas décadas, e deixados de lado pelo próprio samba. Cantar Bezerra se tornou, dizem os próprios sambistas, um ato arriscado. “Ninguém quer correr o risco de ser cancelado”, comenta o compositor e cantor Chico Alves, também proprietário da casa Traço de União, de São Paulo. “As pessoas estão com medo”, diz o filho do artista, o também sambista Ítalo Bezerra.

Ao morrer aos 77 anos, em 2005, Bezerra já sabia o que era ser maldito e viu cada um de seus sucessos lhe reservar dois destinos antagônicos: ao mesmo tempo em que se tornava um herói aos despossuídos, reforçava contra si o ódio de tudo o que existia da classe média pra cima. Desde Pega Eu, de 1979, até Malandro é Malandro e Mané é Mané, de 1999, passando por Defunto Caguete, de 84, Bicho Feroz, de 85, Malandragem Dá um Tempo, de 86, A Semente, de 87, e Candidato Caô Caô, de 88, nenhum poder era poupado. Além de juízes, censores, políticos, delegados, padres, pastores, manés e sogras, todas as sogras, seu nome não era bem quisto nem pelo samba. “Fale aí uma participação especial de um sambista de renome em qualquer LP de sucesso do meu pai”, desafia Ítalo. Tirando o coletivo Os Três Malandros in Concert, de 1995, ao lado de Dicró e Moreira da Silva, não há.

Sem ser chamado à mesa pela turma de Paulinho da Viola, Paulo Cesar Pinheiro, Martinho da Vila, Clara Nunes e Beth Carvalho, nem pelos jovens que redesenhavam o partido com mais velocidade e força percussiva na quadra Cacique de Ramos, de onde sairiam Almir Guineto, Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho e todo o Fundo de Quintal, Bezerra só não era um lobo solitário porque tinha os morros e a poderosa Baixada Fluminense a seu dispor – assim como os morros e a Baixada só não eram de mentira, romantizados com alvoradas sob as quais ninguém chorava e não havia tristeza, porque tinham Bezerra. Ao contrário das letras dos clássicos cronistas de veia literária, como Noel, Cartola, Nelson Cavaquinho, Vinicius, Chico Buarque e Aldir Blanc, sua favela era assumidamente inóspita, machista, homofóbica e bem humorada. “Como é que vou cantar amor se eu nunca tive amor?”, ele dizia.

Era ao morro que o sambista recorria para colher letras e melodias com carteiros, camelôs, garis, bicheiros, bombeiros, serventes de pedreiro, taxistas, macumbeiros e desempregados – todos nascidos no samba. Gente como Pedro Butina, Zé Dedão do Jacaré, Criolo Doido, Embratel do Pandeiro, Claudinho Inspiração, Adelzonilton, Tião Miranda, Nilo Dias, Juarez da Boca do Mato, Walmir da Purificação e Moacir Bombeiro. “Foi depois que Bezerra gravou Minha Sogra Parece Sapatão que consegui comprar minha casa e ajudar os amigos”, diz Roxinho, ex-ajudante de montador de estruturas que, hoje, depois de 10 sambas na voz do artista, tem um bar em Mesquita, na mesma Baixada. Seu samba é um forte candidato ao silenciamento eterno em outras vozes por dois desajustamentos sociais em uma só frase: cantar contra as sogras e dizer a palavra “sapatão”. “Sei que é preciso tomar cuidado”, diz Marquinhos Diniz, autor dos sucessos Cobra Mandada e Medo de Virar Galeto. “Mas chegamos a um ponto em que, se olharmos diferente, saímos algemados.”

E então, o que dizer do samba Canudo de Ouro, sobre o padre que vendia cocaína na sacristia e cobrava em dólar? “Quem quiser cafungar ou dá dois / Vai na sacristia com o sacristão / Mas leve em dólar que a coisa é da boa / Porque com o cruzeiro não tem transação.” De Quem Usa Antena é Televisão, sobre o dia em que a mulher do Chico apanhou feito ladrão por trair o marido? “Vamos botar logo as cartas mesa / Eu fico no barraco e você leva a nega / Essa piranha brava eu não quero mais não.” De Candidato Caô Caô e sua espantosa perenidade contra a classe política? “Ele subiu o morro sem gravata dizendo que gostava da raça / Foi lá na tendinha, bebeu cachaça e até bagulho fumou / Foi no meu barracão e lá usou lata de goiabada como prato / Eu logo percebi, é mais um candidato às próximas eleições.” E de Meu Bom Juiz, de 1986, algo que o rap só faria dez anos mais tarde e que pode ter custado mil portas fechadas e o início do apagamento ainda em vida. Meu Bom Juiz humanizava um traficante diante dos olhos dos moradores de um morro e pedia por sua absolvição. O morro era o Juramento e o traficante, José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha: “Ah, meu bom juiz, não bata este martelo nem dê a sentença / Antes de ouvir o que o meu samba diz / Pois este homem não é / Tão ruim quanto o senhor pensa.”

“Fazem uma confusão perigosa”, diz o historiador Luiz Antonio Simas. “Bezerra era um cronista da sua realidade, não um apologista de bandido. O samba faz também um retrato do machismo e da violência, e Bezerra era testemunha desse horror.” A antropóloga Letícia Vianna, autora do livro Bezerra da Silva Produto do Morro – Trajetória e Obra de Um Sambista Que Não é Santo, considera o sambista um sociólogo de seu tempo. “O que ele diz quando fala sobre a prisão de Escadinha? Está falando de uma reação nas relações sociais do morro. E ele é produto deste morro, alguém importante para entendermos o que era esse Brasil. Se vão cancelar o Bezerra, precisam cancelar também Noel Rosa e Wilson Batista.”

Se dependesse da censura oficial regida ainda durante o governo José Sarney, José Bezerra da Silva seria nome de um desaparecido. Muitas de suas músicas foram proibidas em rádio à época de seus lançamentos. Conforme levantou o reportagem, além dos sambas Malandragem, Dá Um Tempo e São Morungar, Chico Não Deu Sorte, de 82, foi considerada “ofensiva à figura do policial e à pessoa do delegado”, conforme anotações da técnica Alzira Silva de Oliveira. Já O Federal, do mesmo ano, trazia, segundo a mesma censora, “protesto que incita a população a reagir contra todo e qualquer policial”. Já pela vontade cúpula da Igreja Católica no país dos anos 80, Bezerra estaria no inferno. Segundo contavam Adelzonilton e Nilo Dias, autores de Canudo de Ouro, o samba do padre traficante, os dois foram chamados pelo arcebispo de São Paulo para darem explicações. Depois de ouvirem broncas e sermões, saíram sob juras de não cantarem a música nunca mais.

Apagamentos, ao contrário da estridência dos cancelamentos, são fenômenos potencializados no mundo pós redes sociais de forma silenciosa, não deliberada e nem sempre assumida. Simplesmente não se fala, não se toca e não se canta. Johnny Alf, um pianista tão ou mais importante do que tudo o que viria depois para o desenho da bossa nova, teve sua relevância desbotada até que começasse a ressurgir, já morto, sob a perspectiva do antirracismo. Já aos Índios Tabajara, dois irmãos de uma tribo no Ceará que fizeram sucesso nos Estados Unidos como violonistas de concerto nos anos 50 e 60, não deram, muito por serem indígenas, nem um segundo de visibilidade. Ainda que não haja placas de “proibido Bezerra” nas rodas conhecidas pela reportagem, a ausência de seu repertório não deve ser por acaso: recantos no Rio como Samba do Trabalhador, Beco do Rato, Carioca da Gema, Cacique de Ramos, Bar Semente e Samba da Rua do Ouvidor, ou de São Paulo, como Bar Samba e Vila do Samba, dificilmente, ou nunca, passam por Bezerra da Silva. Simas faz uma ponderação: “Mas saindo das rodas da zona sul do Rio e do centro, Bezerra é idolatrado.”

“São Paulo gosta mais de Bezerra do que o Rio”, dizia o próprio Bezerra e diz, hoje, seu filho, Ítalo. “Foi aí que a carreira dele começou.” De fato, há um único núcleo de “bezerristas resistentes” e ele fica em São Mateus, na zona leste da cidade. A roda organizada por Marcelo Cabeça, a Favela Pesada, já fez 26 homenagens ao sambista e mantém uma página de fãs no Facebook com 29 mil membros. “Quem apaga Bezerra não pode gostar de samba”, diz. É como se ele seguisse o que Martinho da Vila havia falado à reportagem um dia antes: “Quem tem de manter Bezerra vivo são os fãs. Essa missão é deles.” Martinho, que gravou Na Aba depois de Bezerra e fez do samba um sucesso, cruzou com o pernambucano poucas vezes. Uma delas foi em seu antigo bar, o Butiquim do Martinho. “De repente ele queria ir embora e eu não entendi nada.” Já na rua, Bezerra confessou: “Sabe o que é, meu cumpade, eu não fumo e não bebo, e está todo mundo fumando ou bebendo aí.” Sinais do tamanho do personagem que havia ali.

Sem regravações de seus sucessos por outros artistas, ainda que Bezerra conte com pouco mais de 388 mil ouvintes mensais no Spotify – Martinho da Vila tem 1.535.752 milhão e Zeca Pagodinho passa dos 1.830 milhão – o sambista foi reverenciado e rejuvenescido por duas vezes, nenhuma delas pelo samba. Em 1996, com Serginho Trombone transportando nota por nota do arranjo de metais original da música Low Rider, da banda funk War, o Barão Vermelho regravou Malandragem Dá um Tempo com estardalhaço e o recolocou em cena. Depois de alguns anos sem cantar a música, Frejat decidiu recolocá-la no repertório de sua carreira solo há um mês e meio. “Sei que há assuntos delicados em algumas letras, mas está faltando humor às pessoas. Eu cantei e ninguém reclamou.” Em 2010 foi um rapper, Marcelo D2, quem fez Marcelo D2 canta Bezerra da Silva, o único álbum tributo de abrangência gravado a Bezerra: “Só estamos discutindo tudo isso agora, machismo, violência, tráfico, porque caras como ele jogaram esses problemas na mesa”, diz D2. “Cara, vou usar um pensamento do próprio Bezerra: se um rico fala de tráfico, é pesquisa. Se um podre fala de tráfico, é traficante também.”

Fonte: Agita Brasília