Entre março de 2017 e janeiro de 2018, uma fêmea de onça-parda (Puma concolor) teve seu deslocamento monitorado no norte da Bahia, na região da Área de Proteção Ambiental do Boqueirão da Onça, que junto ao parque nacional de mesmo nome forma o maior contínuo preservado da Caatinga.
Batizada de Vitória, ela foi o primeiro indivíduo da espécie na região a ser capturado, receber um rádio-colar e ter sua movimentação estudada pelas pesquisadoras do Programa Amigos da Onça, projeto de conservação de felinos no bioma, filiado ao Instituto Pró-Carnívoros.
Todavia, nesse mesmo período, notou-se uma mudança em seu padrão de deslocamento.
Na mesma área onde Vitória costumava viver, dava-se início à construção de um complexo eólico. Fase de muitos ruídos, abertura de estradas, presença humana constante e vai-e-vem de veículos.
Rapidamente, a onça começou a evitar a obra e seu entorno.
“Nesses dez meses ela não cruzou a área dos aerogeradores”, conta Carolina Esteves, pesquisadora do Pró-carnívoros e cofundadora do Amigos da Onça. “E essa maior movimentação da onça, circundando todo o complexo para chegar até um ponto de água, traz um gasto energético muito maior para ela.”
A mesma mudança de comportamento, de manter a distância do empreendimento, foi observada também com onças-pintadas (Panthera onca).
A bióloga explica que, dependendo do bioma onde as onças habitam, suas características físicas são diferentes, tanto as pardas quanto as pintadas.
As da Caatinga possuem um porte menor, bigodes mais duros e pelos das patas mais espessos para pisar no chão quente. E, para sobreviver nesse bioma, o conhecimento sobre onde encontrar água é fundamental.
“Costumamos falar que, se pegarmos uma onça adulta de qualquer outro bioma e soltarmos na Caatinga, provavelmente ela não sobreviverá, ainda mais na época da seca”, diz Carolina.
Quando um filhote de onça nasce, durante um ano e meio a dois anos, a mãe irá ensinar tudo o que ele precisa saber para sobreviver. Na Caatinga, além de como caçar e se proteger, ela também mostrará onde estão os principais pontos de água.
Carolina Esteves, pesquisadora do Pró-carnívoros e cofundadora do Amigos da Onça
O grande problema desse impacto, que parece pouco diante do enorme apelo que as energias renováveis têm, e geralmente só parece recair sobre as aves, é que as onças da Caatinga estão à beira da extinção e elas dependem das matas nativas para sobreviver.
Estima-se que vivam apenas 250 onças-pintadas e 2.500 onças-pardas em todo o bioma, o que inclui o trecho do norte baiano e o sul do Piauí, na região da Serra da Capivara. Desse total, 30 pintadas estão justamente no Boqueirão da Onça.
A onça-pintada está na lista das espécies “criticamente ameaçadas de extinção” na Caatinga, ou seja, um estágio antes do completo desaparecimento na vida livre.
Já a parda é classificada como “em perigo de extinção” nesse bioma, diferentemente de todos os demais do país, onde sua categoria é “vulnerável”.
Infelizmente, esses números podem ser menores, pois são de um levantamento de 2013. “Pelos relatos que temos de caça, de retirada comprovada de indivíduos, as estimativas atuais não são boas”, diz Carolina.
Avanço das eólicas na Caatinga
Se Vitória já demonstrou alteração em seu deslocamento há seis anos, dá pra imaginar que hoje em dia as onças da mesma região enfrentam uma realidade bem mais difícil.
Atualmente há quatro complexos eólicos em funcionamento na Área de Proteção Ambiental (APA) do Boqueirão da Onça. Um deles com 500 torres. Outros dois estão em expansão.
“E há mais seis empreendimentos eólicos a serem instalados”, afirma Cláudia Bueno de Campos, bióloga especialista na conservação de mamíferos carnívoros silvestres, servidora do ICMBio e cofundadora do Amigos da Onça.
Se não bastassem essas plantas de geração eólica, a região também se tornou atrativa para a geração de energia solar. Em 2021, foi erguida a primeira usina sobre uma área de 3 mil hectares de vegetação nativa da Caatinga, que acabou totalmente suprimida.
“A abertura da vegetação ou sua remoção em topos de serra altera o escoamento natural da água da chuva, que alimenta todo o entorno, como nos boqueirões, e ainda afeta nascentes próximas, que podem secar”, revela Cláudia.
Essas nascentes são extremamente importantes para as onças, porque durante as secas se tornam os únicos pontos de água para elas beberem, isto sem falar de sua importância para os moradores locais.
Cláudia Bueno de Campos, bióloga e cofundadora do Amigos da Onça
Conflitos com produtores rurais
Durante décadas houve muita expectativa por especialistas da conservação sobre a criação de uma grande Unidade de Conservação no Boqueirão da Onça. Seria uma maneira de garantir a proteção da fauna nessa região ainda bem preservada da Caatinga.
Depois de anos e idas e vindas, finalmente em 2018 um decreto foi assinado durante o governo do então presidente Michel Temer.
Uma área de 347 mil hectares foi transformada em Parque Nacional, com proteção integral, e, vizinho a ele, outros 505 mil hectares viraram a Área de Proteção Ambiental (APA) do Boqueirão, onde a exploração “sustentável” é permitida por lei.
Enquanto a decisão frustrou ambientalistas, empresas do setor energético comemoraram. A região demonstrava um enorme potencial para seus negócios.
A região Nordeste concentra 90% dos empreendimentos eólicos no Brasil e 85% deles estão na Caatinga, a maior parte nos estados do Rio Grande do Norte e na Bahia.
A chegada desses investimentos é vista com ótimos olhos por governos estaduais e municipais, mas localmente exacerba ainda mais um problema antigo: o abate intencional das onças.
Ao se deparar com os complexos e se locomover muito mais para encontrar recursos como água e alimentos, muitas vezes as onças acabam se aproximando mais de propriedades rurais onde há animais domésticos ou criação de bodes e cabras, comum nessas regiões. Assim, acirram-se os conflitos entre produtores e esses felinos, resultando em mortes.
Paulo Marinho, biólogo doutor em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e especialista na conservação de mamíferos na Caatinga
Para evitar prejuízos com a perda do rebanho, produtores colocam armadilhas para matar os predadores, e tanto as onças-pardas quanto as pintadas, já raríssimas no bioma, perdem a vida.
Além do estudo e monitoramento da população de felinos, o Amigos da Onça tem um programa de “educação para a conservação” com criadores para conscientizá-los sobre a convivência mais harmônica com esses animais e ainda um projeto específico para tentar evitar a retaliação a elas.
Contudo, antes disso, o objetivo é que elas nem consigam atacar os rebanhos. Foram desenvolvidos chiqueiros protegidos, ambientes em que as onças não conseguem entrar, diferentes dos currais tradicionais, totalmente abertos.
A ideia é que, durante o período da noite, caprinos e ovinos sejam recolhidos para esses espaços bem ventilados, o que garante ainda o conforto térmico, resultando numa melhor saúde e qualidade da carne para a futura venda.
O patinho feio dos biomas brasileiros
Até o início deste século, nada se sabia sobre os grandes felinos da Caatinga, embora não houvesse dúvida de que eles sempre existiram por ali – pinturas rupestres são prova de que as onças faziam parte da fauna daquela região.
Contudo, diante da exuberância da Mata Atlântica e da Amazônia, o bioma nordestino sempre foi pouquíssimo valorizado, e, como consequência, pouco estudado. Acreditava-se que a aridez de seu solo em muitas áreas era sinônimo de pouca diversidade de animais e plantas. Um engano enorme.
Foi após um levantamento feito entre 2006 e 2011 pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap) do ICMBio, que se teve um primeiro diagnóstico da preocupante situação das onças no bioma.
O foco principal era a pintada, mas percebeu-se que a parda também estava ameaçada, e, sem a proteção de uma, a outra não sobreviveria. “Foi possível ver a fragilidade das espécies”, relembra Cláudia.
Na época, ela participou do trabalho e, depois de terminado, viu a necessidade urgente em traçar ações para proteger os felinos. Foi então que nasceu o Amigos da Onça, em 2012.
Apesar do esforço árduo das pesquisadoras e seus colaboradores em campo – todos trabalhando de forma voluntária pela conservação desses animais – ao longo da última década o que se viu foi uma perturbadora transformação naquele cenário.
A abertura de estradas para esses complexos, por exemplo, facilita o acesso de caçadores. Muitos aerogeradores de testes são instalados sem a permissão prévia do órgão licenciador. Ali eles abrem estradas de acesso e colocam uma torre com aparelhos de medição durante um ano aproximadamente. Daí o estrago já foi feito.
Carolina Esteves, pesquisadora do Pró-carnívoros e cofundadora do Amigos da Onça
“Relatos de moradores são de chorar. A cada conversa, mais estradas abertas, a vegetação sendo removida”, diz Carolina, consternada. Para a pesquisadora, um dos agravantes dessa situação continua sendo esse olhar diferenciado para a Caatinga.
“O grande desafio é realmente trazer os olhares da população, das políticas públicas e da mídia para o bioma. Ele é visto como o patinho feio dos biomas. Isso reflete na falta de recursos destinados para a melhoria da convivência do sertanejo com o semiárido”, lamenta.
Olha quanto tempo demoramos para entender o valor que o bioma tem. A Caatinga ainda não é considerada um patrimônio nacional pela Constituição. Essa percepção de terra rachada precisa mudar.
Carolina Esteves, pesquisadora do Pró-carnívoros e cofundadora do Amigos da Onça
Enquanto essa percepção permanece ainda no passado, o relógio do desenvolvimento energético anda a passos largos e não espera. E, a cada segundo, as poucas onças que ainda sobrevivem ali ficam mais ameaçadas.
“É importante deixar claro que a proposta da geração de energia é extremamente pertinente e importante, mas o que precisa avançar na mesma velocidade é o entendimento do impacto desses empreendimentos em regiões conservadas”, finaliza Cláudia.
Fonte: UOl/Por Suzana Camargo