BAHIA

‘A aprovação sem aprendizagem corrompe a progressão continuada’, diz presidente do Todos pela Educação

A polêmica portaria 190 editada no início deste ano pela Secretaria de Educação da Bahia trouxe à baila o método educacional da progressão continuada. Defendida pelo educador brasileiro Paulo Freire, a medida tem sido objeto de debate e implementação em diversas esferas educacionais no Brasil. Presidente-executiva do “Todos pela Educação”, Priscila Cruz discute os meandros deste modelo e sua aplicação prática nas escolas.

A especialista em Educação explica que enquanto a progressão continuada engloba tanto a aprendizagem dos estudantes quanto o fluxo de avanço nos estudos, a aprovação automática muitas vezes se limita apenas à promoção do aluno, sem necessariamente garantir o conhecimento.

Na prática, a implementação da progressão continuada demanda uma gestão escolar centrada na promoção efetiva da aprendizagem. Isso implica na realização de avaliações periódicas ao longo do ano letivo para identificar alunos com dificuldades de aprendizagem e oferecer-lhes suporte adequado, como aulas de reforço, recuperação, ou plantões de dúvidas.

Na Bahia, a portaria, que o governo diz ser a implementação da progressão continuada no estado, é vista pelo sindicato dos professores com uma tentativa de “aprovação em massa” dos estudantes. Priscila Cruz ressalta que políticas educacionais eficazes devem ser construídas em diálogo com os docentes e focadas no aprendizado dos alunos.

O Todos pela Educação é uma ONG com a participação de diversos setores da sociedade brasileira que atua para a melhoria da educação básica no País.

A progressão continuada era um método defendido pelo educador brasileiro Paulo Freire. O que seria esse método?

Progressão continuada significa que todo aluno tem direito a ter fluxo com aprendizagem ao longo de toda a sua trajetória na educação básica. Ou seja, ele tem o direito de aprender tudo aquilo que está na Base Nacional Comum Curricular, pelo menos, no nível que seria o nível básico. Portanto, a sua progressão, isto é, o fluxo ao longo dos anos da Educação Básica seria garantido. O que acontece é que muitas vezes a progressão continuada é confundida ou implementada como aprovação automática, que é bem diferente. Aprovação automática significa pegar uma perna, mas não a outra, porque a progressão continuada tem esses dois componentes, que são a aprendizagem e o fluxo. A aprovação automática acaba sendo a aprovação, mas não necessariamente com aprendizagem. É o que muitas vezes acontece no país, porque garantir aprendizagem exige muito mais gestão, formação de professores e condições nas escolas. Aprovar é algo que você pode inclusive determinar numa canetada, mas garantir a aprendizagem, não. Por isso, é muito importante a gente retomar o conceito original, que é o da garantia da aprendizagem. A aprovação é uma consequência da aprendizagem garantida e não um fim em si própria.

Como funciona a progressão continuada na prática?

Na prática, basicamente, é a gestão voltada à aprendizagem. Você tem que fazer avaliações ao longo do ano. Não adianta fazer só uma avaliação no final do ano. Então, são avaliações bimestrais ou no máximo trimestrais, identificando os alunos que estão com maior dificuldade. Aqueles que estão com dificuldades de aprendizagem em componentes curriculares são muito fundamentais para progredir nos estudos. Você pode chamar isso de recuperação, pode ter contraturno, aulas de reforço, plantão. Tem vários modelos, mas o fundamental é que aquilo que deixou de ser aprendido seja captado de forma rápida. A reprovação realmente é muito ruim para o aluno e também muito ruim para gestão pública, mas especialmente para o aluno. Agora, como que a gestão pública combate isso? Com uma gestão voltada à aprendizagem, não é? A gestão toda precisa estar voltada para a aprendizagem.

Para melhorar esse aprendizado dos estudantes, é preciso que se invista na formação dos professores?

Sim. Em Teresina é muito interessante. Há uma formação de professores a partir das dificuldades dos alunos. Então, por exemplo, se logo no começo da trajetória os alunos estão com muita dificuldade em um assunto, é importante que a rede faça formação de professores nesses temas. Se, no Ensino Médio, os alunos estão com dificuldade em equação do primeiro grau, ele não vai aprender a do segundo grau. Se tem muitos alunos com essa dificuldade, os professores de matemática precisam receber formação continuada para garantir a aprendizagem dos seus estudantes. Então, basicamente, é isso que é feito nas redes que conseguem garantir a aprendizagem de todos.

Paulo Freire tentou implementar a progressão continuada quando era secretário de Educação de São Paulo. Mas hoje as condições são mais favoráveis para adotar este modelo?

Nos últimos 20 anos, o Brasil aumentou o investimento por aluno. Só lembrando que 15 anos atrás um aluno do Ensino Superior tinha um investimento 11 vezes maior do que o aluno da Educação Básica. Agora, a Educação Básica é quatro vezes maior. Não é porque o aluno de Ensino Superior diminuiu, mas porque o aluno da Educação Básica subiu de valor per capita por ano. Então, teve Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério), depois Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) e agora o novo Fundeb. Tem uma série de condições materiais de financiamento, mas também de gestão e pedagógicas. Tem o caso do Ceará, que é muito emblemático no Brasil, que hoje consegue garantir aprendizagem da maioria dos seus alunos. E, portanto, tem uma aprovação maior também. Então, o que precisamos olhar é que independentemente das dificuldades inerentes de qualquer gestão, da questão socioeconômica dos alunos, que ainda é muito desafiadora, garantir a aprendizagem de todos é possível. O que não pode é a gente esquecer da aprendizagem e focar só na aprovação. É muito importante que se tenha esse processo.

Como tem sido a experiência com o método da pressão continuada nos estados?

Tem casos de estados e municípios. Tem o caso da rede do Ceará, e São Paulo também tem boas experiências em progressão continuada. Teresina tem um excelente trabalho. Quando a gente fala em cidades têm Araraquara (São Paulo). A gente tem vários bons casos. Não dá para esperar a perfeição ou a ausência de falhas, porque a gente está falando de milhões de alunos. Mas é um trabalho muito forte de recuperação ao longo da trajetória. Goiás faz um excelente trabalho, o Espírito Santo também. Então, tem sim, tem redes que podem dar o exemplo. E mais do que um exemplo. Acho que pode dizer que é possível. Um governo estadual não pode dizer que é impossível garantir a aprendizagem dos alunos ao longo do ano e que a aprovação tem que ser automática, simplesmente. É muito importante garantir a aprendizagem, porque a aprovação sem aprendizagem é uma corruptela do conceito original de progressão continuada.

Na Bahia, a Secretaria de Educação editou uma portaria no início deste ano sobre progressão automática. O sindicato dos professores, entretanto, tem criticado e classificado a medida como uma tentativa de “aprovação em massa” dos estudantes. Como a senhora avalia este conflito?

Não tenho os detalhes do que foi editado como portaria aí na Bahia. De uma forma geral, é importante que haja o processo de recomposição da aprendizagem ao longo do ano, que seja feito a partir de avaliações de aprendizagem também. A aprendizagem do aluno tem que ser o foco da política estadual. A preocupação do Estado da Bahia em reduzir as reprovações é uma preocupação importante. É importante porque justamente os alunos mais afetados pela reprovação são os alunos que estão numa situação de maior vulnerabilidade, os alunos mais pobres, alunos negros. Tem que ter um equilíbrio entre apoio para a escola e professores realizarem a recomposição da aprendizagem ao longo do ano, e também um compromisso da escola e dos professores em não desistir de nenhum aluno. Uma política educacional bem implementada é aquela em que há uma pactuação prévia com quem implementa as políticas. O principal implementador das políticas educacionais são os professores. Então, ter o diálogo com os professores é bem importante. O que não significa que a decisão será deslocada para os professores pela secretaria.

A Bahia tem apresentado dados negativos na Educação. O Ideb de 2022, por exemplo, apontou o estado com a quarta pior nota do Ensino Médio. Como a senhora vê esses índices da Bahia?

A Bahia tem tudo para ter um resultado muito melhor. Isso é um acúmulo de gestões passadas, mas nada impede que a Bahia passe a ter, a partir deste momento, resultados melhores. Basta vontade política, uma boa decisão de alocação de recursos, das políticas prioritárias, boa implementação, foco no aprendizado, uma gestão voltada ao aprendizado. Toda gestão da Secretaria (de Educação), das regionais, das unidades escolares, precisa ser voltada para o aprendizado, com avaliações periódicas tanto da própria escola quanto externa para verificar o aprendizado dos alunos. Ter um bom diagnóstico. Mais do que diagnóstico é preciso ter um plano traçado a partir desta realidade que essas avaliações vão trazer do aprendizado. Esse diagnóstico tem que ser capaz de impulsionar uma política que garanta a aprendizagem dos alunos baianos, olhando principalmente para os estudantes que estão em situação mais crítica. Aqueles que estão abaixo do básico no aprendizado, que estão acumulando defasagem de aprendizados. Isso pode ser feito com formação continuada dos professores, recomposição do aprendizado, plantão de dúvidas, contraturno. Tem uma série de estratégias que podem ser utilizadas para que os alunos possam recuperar o que foi perdido em termos de aprendizado ao longo do ano passado para que a reprovação não aconteça. Para que tenhamos uma progressão continuada e não a aprovação automática. E muito menos, que seria a pior situação possível, a reprovação em grandes quantidades que vêm acontecendo na Bahia.

Como a pandemia afetou a Educação no País?

A pandemia introduziu uma necessidade, pelo menos de forma mais pública, mais ampla, de recomposição das aprendizagens. Temos falado muito isso à luz daquilo que os alunos deixaram de aprender durante a pandemia. Mas mesmo antes da pandemia e agora depois da pandemia, muitos alunos deixam de aprender componentes curriculares que são muito fundamentais para que continuem aprendendo nos próximos anos. Então, é um processo contínuo de recomposição da aprendizagem, que pode dar o nome de aceleração, de recuperação da aprendizagem. Pode ser o nome que quiser, mas o importante é que o acúmulo de defasagens não aconteça.

Priscila Cruz é uma das fundadoras do Todos pela Educação. Mestre em Administração Pública pela Harvard Kennedy School of Government, é graduada em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas e em Direito pela Universidade de São Paulo

*Com orientação da subeditora Monique Lôbo