O Idec (Instituto de Defesa de Consumidores) e o MPF (Ministério Público Federal) de São Paulo entraram com uma ação no TRF-3 (Tribunal Regional da 3ª Região) em que pedem indenização de R$ 1,7 bilhão do WhatsApp por supostas violações à LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados). A ação civil pública (ACP), de valor sem precedentes no tema da legislação de proteção de dados, foi protocolada na tarde desta terça-feira (16).
A ACP trata da política de privacidade adotada pelo aplicativo de mensagens em 2021 e que ainda está em vigor. As instituições dizem que o WhatsApp “forçou as pessoas a aderirem” à política de compartilhamento de dados entre as plataformas do grupo Meta, também dono do Instagram e do Facebook. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) também é alvo da ação, sob denúncia de falta de transparência e ineficiência.
Procurada, a Meta não respondeu até a publicação da reportagem. O texto será atualizado, em caso de resposta.
O MPF diz que a conduta da Meta em 2021 foi ilegal, ao ferir os direitos à ampla informação e à proteção de coação durante a manifestação de consentimento para o uso de dados pessoais pelo mercado. As práticas do conglomerado de redes sociais ainda teriam ferido o Marco Civil da Internet e o Código de Defesa do Consumidor, conforme os autos da ação civil pública.
A ACP pede, em caráter liminar, que a Meta reduza o compartilhamento de dados do WhatsApp às demais empresas da Meta, nos moldes adotados na União Europeia. E ainda que o conglomerado crie uma ferramenta intuitiva para facilitar a oposição a esse tratamento classificado como “abusivo”. Hoje, o procedimento envolve cinco links e o envio de um email.
Em 2021, a Meta informou que intensificou o compartilhamento de dados, iniciado em 2016, com outras empresas. Isso foi feito a partir de uma janela no alto do WhatsApp, com a indicação “toque para ler mais”.
Em um primeiro momento, a Meta dizia que as conversas pessoais continuariam a ser protegidas por criptografia. Na página seguinte, dizia que compartilharia informações do WhatsApp com empresas do grupo Meta e com terceiros, que poderiam gerenciar conversas com clientes a partir de uma plataforma do Facebook.
Aceitar essa mudança era uma condição para continuar usando o WhatsApp. “Era um pegar ou largar”, afirma a advogada do Idec, Camila Contri.
Em nota divulgada na época, o WhatsApp afirmou que quando o Facebook atuava como um provedor de hospedagem para uma empresa, usa as mensagens que processa em nome e sob as instruções dessa empresa. “Esta é uma prática padrão da indústria entre muitas empresas que oferecem soluções de hospedagem”, disse, acrescentando que as empresas poderiam usar os chats que recebem para seus próprios fins de marketing, o que poderia incluir publicidade no Facebook.
Segundo a política de privacidade da empresa, a Meta compartilha informações de contatos, fotos e descrições de grupos, quem vê conteúdos publicados nos status (stories do WhatsApp), comunicação com empresas registradas no WhatsApp Business, transações, entre outras.
A ação civil pública compara a situação brasileira com a europeia. Lá, a comissão irlandesa de proteção de dados (DPC) multou a Meta em 225 milhões de euros (R$ 1,328 bilhão na cotação atual), após investigar as informações compartilhadas entre o WhatsApp e outras empresas do conglomerado. A Meta, na Europa, fica sediada na Irlanda, onde o órgão regulador tem postura menos rígida, de acordo com especialistas ouvidos pela reportagem.
Segundo o fundador do Centro Europeu de Privacidade (NOYB), Max Schrems, a Meta usava informações do WhatsApp para direcionar publicidade no Instagram e no Facebook. Essa prática foi vetada pelo DMA (ato de mercados digitais), legislação contra monopólios digitais da Europa.
Esse tratamento continua em curso no Brasil, de acordo com a advogada do Idec, Camila Contri. “A Meta pode perceber se o usuário deixa de manter conversas com um contato frequente, supor que se trata de um familiar ou de uma relação romântica, e passar a indicar livros de autoajuda como publicidade”, afirma.
Esse compartilhamento não tem distinção entre crianças, adolescentes e adultos, segundo a ação civil pública.
“Se uma criança ou um adolescente, por exemplo, está em grupos sobre joguinhos online, é possível que, a partir da coleta de nomes, descrição e foto dos grupos, passe a receber propagandas, inclusive algumas invasivas ou perigosas, sem restrição de idade”, diz Flora Rebello Arduini, consultora da organização internacional Ek?, cuja petição deu origem ao inquérito do MPF no qual se baseia a ACP.
O valor da indenização de R$ 1,733 bilhão foi calculado com base em multas aplicadas pelo regulador europeu contra a Meta, a conversão de moedas de euros para reais e o número de usuários do aplicativo de mensagens no Brasil -150 milhões, de acordo com a plataforma Statista. Em caso de condenação, o dinheiro será depositado no Fundo de Direitos Difusos.
Provocados pelo Idec em 2021, a ANPD, o Cade e o Ministério Público Federal começaram a investigar o caso. Em maio, daquele ano quando as novas normas começariam a valer, o WhatsApp conseguiu um acordo com a ANPD para que os usuários tivessem mais 90 dias para aceitar os termos antes de iniciar o tratamento.
As investigações progrediram sob sigilo até 2023, quando a ANPD avaliou que o compartilhamento de dados do WhatsApp pela Meta estava de acordo com a LGPD.
A ação civil pública, no entanto, afirma que essa última decisão contraria notas e recomendações técnicas que a própria ANPD formulou durante o processo administrativo. Isso seria um indicativo de ineficiência, segundo os litigantes.
Além disso, o MPF afirma que teve dificuldades para acessar documentos levantados pela ANPD durante a investigação, o que seria uma evidência de “falta de transparência” da autoridade. O processo pede que o regulador brasileiro elabore “uma norma detalhada sobre sigilo, garantindo a publicidade e a prestação de contas como regra e o sigilo como exceção.”
A Autoridade Nacional de Proteção de Dados disse que ainda não foi notificada.
O Brasil é o terceiro maior mercado da Meta para WhatsApp -atrás somente de Índia e Indonésia- e é o país que mais manda áudios no mundo, quatro vezes mais do que qualquer outro. “O Brasil, por causa da intensidade do uso do WhatsApp, é fundamental [para a Meta]”, disse à Folha Will Cathcart, presidente do WhatsApp.
Parte dessa popularidade têm a ver com os pacotes de telefonia móvel com “WhatsApp grátis”, oferecidos pelas três maiores operadoras do Brasil. Na verdade, as telecoms subsidiam o acesso ao aplicativo de mensagens da Meta e dividem o custo com todos os assinantes, em uma prática chamada de “zero rating”.
Hoje, ainda é possível impedir esse compartilhamento de dados por meio deste formulário. O usuário precisa indicar à qual tratamento quer se opor e, se quiser, explicar como essa prática é prejudicial.
Linha do tempo da relação entre meta e WhatsApp
**19 de fevereiro de 2014**
O conglomerado então chamado de Facebook comprou o WhatsApp por US$ 22 bilhões.
**25 de agosto de 2016**
WhatsApp começa a compartilhar informações não criptografadas de usuários com Facebook. Mensagens e outros dados criptografados, como fotos e áudios enviados e geolocalização, continuaram sob proteção.
**30 de abril de 2018**
Criador do WhatsApp Jan Koum se demite do então Facebook, por não endossar decisões do conglomerado sobre privacidade.
**4 de janeiro de 2021**
WhatsApp altera política de privacidade para expandir compartilhamento de dados a empresas de fora do grupo Meta e divulga prática em curso desde 2016.
**2 de setembro de 2021**
Regulador irlandês multa WhatsApp em 225 milhões de euros, após investigar compartilhamento de dados de usuários do app de mensagem com outras marcas da Meta.
**1 de março de 2024**
Meta interrompe uso de dados de WhatsApp para direcionar publicidade do Facebook e do Instagram na Europa, para se adequar à lei de mercados digitais europeia.
Fonte: Bahia Notícias