Quando soube que a médica Lorena Pinheiro tinha perdido a vaga de docente na Universidade Federal da Bahia (Ufba) após uma decisão judicial, muita coisa passou pela cabeça do farmacêutico Felipe Hugo Fernandes. Uma delas foi uma conclusão amarga. “Meu processo acabou gerando o de Lorena. Ela não sabia de nada e, um belo dia, saem todas as nomeações, menos a dela”.
Doutor em Ciências Farmacêuticas pela Unesp e negro, Felipe foi aprovado em um concurso para a área de Farmacologia, no Instituto de Ciências da Saúde da Ufba. Em 2021, contudo, perdeu a vaga depois que a candidata aprovada na ampla concorrência entrou na Justiça, antes mesmo da nomeação dele, para assumir a vaga.
No Brasil, existem pelo menos sete casos de candidatos que usaram a Justiça para impedir a nomeação de candidatos negros cotistas, todos aprovados em primeiro lugar após a heteroidentificação. Desses, quatro estão na própria Ufba – além de Lorena e Felipe, houve processos na Escola de Medicina Veterinária e Zootecnia e na Escola de Belas Artes. Outros três são nas Universidades Federais de Sergipe (UFS), de Uberlândia (UFU) e Fluminense (UFF).
O motivo pelo qual a Ufba desponta no número de casos talvez seja justamente porque seus editais têm funcionado de forma mais coerente para aplicar a Lei de Cotas. Sancionada em 2014, a política afirmativa foi alvo de estudos que mostraram que não estava sendo efetiva nos casos de professores de universidades federais. Em 2018, contudo, a instituição mudou a forma de reserva de vagas nos editais e virou referência para outras universidades no Brasil. Em 2022, inclusive, o Ministério Público Federal (MPF) em Sergipe recomendou que a UFS seguisse o modelo da Ufba.
Logo que o caso de Lorena ganhou repercussão, houve quem se questionasse se a decisão judicial poderia afetar a aplicação da Lei de Cotas nos concursos para professores federais. O que muitos não sabiam, porém, era que isso já estava acontecendo.
No mandado de segurança impetrado pelo advogado da médica Carolina Cincurá Barreto no processo que impediu a posse de Lorena, a sentença do caso de Felipe é usada como precedente. “O receio maior é de você começar a ter outros processos sendo embargados pelo país, em outras instituições que estão fazendo concurso nesse exato momento”, acrescenta Felipe.
Aplicação
Até 2018, a Ufba aplicava a Lei de Cotas por área de conhecimento. Assim, quando havia mais de três vagas por área, uma seria reservada para candidatos negros. O problema é que, no contexto das universidades públicas, é raro haver três vagas para uma mesma especialidade ao mesmo tempo. “Se tornava praticamente inviável cumprir a política que a lei estava trazendo. A gente passou a fazer uma reflexão na instituição para aperfeiçoar nossos métodos de seleção docente e viabilizar, de fato, o cumprimento da lei”, conta o pró-reitor de Desenvolvimento de Pessoas, Jeilson Andrade.
A Ufba vinha sendo demandada pelo movimento negro, inclusive o tema havia sido objeto de discussão do Coletivo Luiza Bairros, que reúne professores, técnicos e estudantes negros da Ufba contra o racismo institucional. Além disso, a universidade se amparou no fato de que, em 2017, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a Ação Declaratória de Constitucionalidade 41/DF, indicou que, em concursos com baixo número de vagas, não se deve usar o critério da especialidade.
Citando especificamente os processos para o magistério superior, Barroso indica que devem ser adotadas medidas alternativas para ampliar a representação racial, a exemplo da aglutinação de vagas. É assim que, após meses de discussão, a Ufba chega ao modelo da reserva pela totalidade de vagas. Isso começa no edital nº 2 de 2018, com validade para o ingresso a partir de 2019. Desde então, oito editais com este modelo já foram lançados.
De acordo com o pró-reitor, a instituição entende que as cotas raciais para docentes são importantes pelo histórico de desigualdade racial no país. “Quando a gente pensa em postos de poder e comando no serviço público, isso foi muito pouco acessado por pessoas negras. De certo modo, ser professor de universidade é socialmente relevante. Tem uma reparação importantíssima. E tem também o aspecto de promoção da diversidade”, diz, citando que a universidade passa a ter mais representação da diversidade real da população.
Na sentença da juíza Arali Maciel Duarte, da 1ª Vara da Justiça Federal em Salvador, no processo que impediu a médica Lorena Pinheiro de ser nomeada, porém, a magistrada entendeu que essa forma de aplicação concederia 100% das vagas aos candidatos cotistas.
No entanto, se o método aplicado for por especialidade – ou seja, a cada três vagas, uma para cotas -, o que aconteceria seria exatamente o contrário, na avaliação da advogada Camila Carneiro, especialista em direito do estado e presidenta da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Bahia (OAB-BA).
“Essa interpretação é equivocada porque, diferentemente do que ela diz, seria, na verdade, 100% para ampla concorrência se fosse por especialidade. Ou seja, não teria cotas. Passaria pelo critério meritocrático e não reparatório”.
Segundo a advogada, esse modelo adotado pela Ufba nada mais é do que a garantia da aplicação da lei. Como as cotas são uma política de reparação, a universidade pode fazer um concurso público apenas para ações afirmativas, inclusive por sua autonomia institucional. “Mas este edital não é. Não existe isso de 100% de vagas para pessoas pretas e pardas, nesse edital. É um edital misto que tem, obviamente, a ampla concorrência, mas que 20% das vagas são preferencialmente para reserva de pessoas pretas e pardas”.
Ela acrescenta, ainda, a aplicabilidade constitucional do método, que se adequa à recomendação do STF. A decisão da juíza, portanto, é contrária ao entendimento do STF – e sentenças nesse sentido dariam insegurança jurídica e seriam inconstitucionais, de acordo com Camila.
“A aplicação considera o total de vagas disponível e não a oferta por cargo. As vagas são abertas por funções, mas, para a aplicabilidade, é a oferta total. A Lei de Cotas não foi feita para ser meritocrática. Meritocracia não funciona com desigualdade social. ‘Ah, mas Lorena é médica e tem doutorado’. Mas a Lei de Cotas foi feita para reparação histórica, porque a gente sabe a cor da desigualdade social e a cor que a docência de nível superior tem”.
Trata-se de reparação porque, por mais de 350 anos, o Brasil foi um dos países que mais se beneficiou do comércio de pessoas negras escravizadas, como lembra o defensor público federal André Porciúncula. Após a abolição da escravidão, pessoas negras foram abandonadas nas ruas das cidades sem acesso a políticas públicas.
“Ao longo da história do Brasil, nós tivemos diversas políticas públicas segregacionistas como, por exemplo, a lei de terras do império, a qual proibia que homens negros, ainda que libertos, fossem proprietários de terra, e o Código Penal de 1840, que criminalizava a capoeira, ou seja, a cultura do povo negro”.
Ele também aponta que as universidades federais têm autonomia para formular seus editais de uma maneira que atendam as cotas. “Se só tem uma única vaga para uma especialidade, se você aplicar 20% sobre 1 dá 0,2. Arredondando para baixo, como a lei de cotas determina, não tem a vaga para a cota. Isso negaria vigência à legislação, o que é inadequado, o que é ilegal”.
Para a Defensoria Pública da União, aplicar o percentual de cotas sobre o número total de vagas atende à lei. “Isso é uma política pública adequada que visa corrigir toda essa base histórica, esses efeitos, as vulnerabilidades desse povo, o povo negro, que está disputando a vaga como cotista”.
Procurado pela reportagem, o Ministério da Educação afirmou que o concurso da Ufba está no âmbito da autonomia da universidade, mas em alinhamento com a legislação vigente.
Julgamento
Na época em que se inscreveu para o concurso da Ufba, no fim de 2019, o farmacêutico Felipe Hugo Fernandes pensava que o sistema seria mais justo. Pela pandemia da covid-19, o processo seletivo para 30 vagas foi suspenso e só voltou a ser aberto em 2021.
Assim como Lorena, ele passou pela banca de heteroidentificação e recebeu a notícia da homologação, no fim de 2021. Só que, alguns dias depois, recebeu um email anônimo. O remetente alertava que alguém tinha movido um processo, que provavelmente seria a candidata da ampla concorrência, e o juiz tinha concedido a liminar.
Ele entrou em contato com o advogado Igor Mascarenhas, que conseguiu acessar o processo. “Foi muito parecido com Lorena. Não ouviram a Ufba, não ouviram a mim, que era o mais interessado, e foi dada a liminar para ela tomar posse em 10 dias. Eu estava com a mão na taça e perdi”, lamenta.
A pessoa a quem ele se refere é a hoje professora Quiara Lovatti Alves, também farmacêutica e doutora em Biotecnologia e Medicina Investigativa. Desde 2022, ela é docente do ICS, na área de Farmacologia. Na sentença, o juiz federal Carlos D’Ávila Teixeira, da 13ª Vara Cível da Bahia, entende que apenas uma vaga foi ofertada.
Procurada pela reportagem, Quiara não quis se manifestar e pediu para ter sua identidade preservada. No entanto, o CORREIO entende que trata-se de um assunto de interesse da sociedade e que sua identidade já pode ser conhecida, uma vez que o processo é público. Parte da sentença é, inclusive, usada na petição inicial dos advogados de Carolina Cincurá Barreto, no caso da vaga de otorrinolaringologia.
Felipe chegou a recorrer, mas o juiz não aceitou o argumento. O processo seguiu para a segunda instância e Felipe teve que aguardar a decisão. “Podem perguntar: ‘por que você passou dois anos e meio quieto?’. Porque talvez eu não tivesse saúde mental para enfrentar tudo que a professora Lorena está passando. Infelizmente, as pessoas pensam que nós estamos ali porque não temos uma capacidade intelectual. Pelo contrário: eu e Lorena fomos aprovados e tivemos mérito”, desabafa.
Sem resposta há dois anos e meio, Felipe foi aprovado em um concurso para a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), também em Farmacologia, para o curso de Medicina.
“Passei dois anos e meio esperando. Pode ser hoje (uma decisão), pode ser amanhã, mas pode também não ser, porque você não sabe a decisão que o juiz vai tomar. Eu já tinha deixado passar outras oportunidades”, diz ele, que tem pesquisas sobre plantas medicinais. “Tenho medo também porque vou chegar num local em que ela estava. Qual vai ser a recepção do ambiente? Porque, em todo esse tempo, nenhum professor do departamento me mandou um email, nunca nem para me desejar força”.
O advogado Igor Mascarenhas, que representa Felipe, explica que a alegação da então candidata era pela meritocracia. “Ela não entrou contra Felipe, inclusive excluiu deliberadamente Felipe para que ele não pudesse se defender”. De acordo com Igor, houve a interposição de um novo recurso ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região com parecer do Ministério da Igualdade Racial (MIR) e manifestações do STF e do MPF.
“Acho que essas decisões são pontuais. São de juízes de primeira instância e ainda não foram ratificadas pelo tribunal. A gente espera que o tribunal reaja a esse tipo de situação, porque o que a gente observa por parte de alguns magistrados é o desmonte da política de cotas. A política de cotas não serve para Felipe ou para Lorena, ela serve para o todo”.
Nomeados
Na Ufba, houve pelo menos outros dois casos de tentativas de retirada da vaga de um candidato cotista. Entre 2021 e 2022, aconteceu na Escola de Medicina Veterinária e Zootecnia. O desfecho lá foi diferente porque os dois candidatos, eventualmente, conseguiram ser absorvidos pela unidade, de acordo com a direção. Além disso, o primeiro colocado da ampla concorrência também seria uma pessoa negra que, durante o processo de inscrição, não teria se atentado a fazer a opção pelas cotas. Ele assumiu antes da professora cotista, que foi chamada ainda durante a validade do concurso. A reportagem não conseguiu localizá-la para entrevista antes da publicação.
Outro caso foi da professora Vanessa Souza, hoje docente da Escola de Belas Artes. Doutora em Artes Visuais pela Unesp, ela já era professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) havia nove anos. Como transferências entre instituições são mais raras, decidiu fazer o concurso da Ufba, aberto no fim de 2022, para 41 vagas – dessas, oito para docentes negros.
A banca de heteroidentificação ocorreu em maio de 2023 e a homologação dos resultados aconteceu no dia 1º de junho daquele ano. “Durante o processo de heteroidentificação, acabei conhecendo alguns candidatos cotistas e comecei a estranhar o fato de eles terem sido convocados e eu não”, lembra. No dia 30 daquele mesmo mês, Vanessa entrou em contato com o departamento.
Só então descobriu que a candidata aprovada em primeiro lugar na ampla tinha movido um processo para que a justiça determinasse sua nomeação. “Infelizmente, eu não tinha, naquele momento, condições de ter acompanhamento jurídico e fiquei sem saber que iria acontecer. Uma pessoa da área de direito me orientou a acompanhar o processo nos canais digitais do judiciário e vi, para minha surpresa, que meu nome aparecia em vários documentos”, conta. A candidata chegou entrar com quatro mandados de segurança – três relacionados especificamente à vaga de Vanessa.
A Ufba, através de sua procuradoria, recorreu e Vanessa conseguiu tomar posse no fim de setembro de 2023. Negra e filha de um eletricista e uma copeira, Vanessa conta que encontrou colegas parceiros e interessados na política de cotas. No entanto, já viveu situações de ataque. No primeiro dia de trabalho, foi hostilizada por alguns.
“Uma professora chegou a dizer, dentro de um grupo de docentes, que eu ‘entrei de forma dúbia’. Em outra ocasião, a mesma professora, alinhada com outro docente, enaltece a produção da outra candidata para finalizar dizendo que ‘ela foi injustamente preterida pela Ufba em nome das políticas reparadoras'”, relata. Outra colega chegou a dizer que o trabalho na Galeria Cañizares da Ufba estava sendo “menos profissional”, devido à atuação de Vanessa, e outro disse a estudantes que tinha entrado “uma pessoa menos qualificada”.
“Todos estes são docentes que comumente são vistos realizando atividades em eventos sobre culturas negras, indígenas, lgbtqia+, etc. Por acontecimentos como esses, tenho certeza que, hoje, a única coisa que pode salvar a produção de conhecimento nas universidades são as cotas. Querem falar sobre negritude, mas são contra as cotas. Acredito que minha presença, como de tantas outras pessoas negras, é de vital importância dentro da universidade”.
Outros estados
Em Sergipe, o MPF recebeu uma denúncia sobre os concursos da UFS em 2019. Até aquele ano, a instituição aplicava o fracionamento, que é a divisão por especialidade, como lembra a procuradora da república Martha Carvalho. De acordo com ela, a prática é ilegal.
Depois, veio o método do sorteio: em um mesmo edital com um número maior de vagas, somavam-se todas e depois as cotas eram definidas por meio de um sorteio público. Além de, por vezes, a vaga cair em áreas que não tinham candidatos negros aprovados, desconsiderava o princípio da lei que prevê que o candidato negro pode concorrer duas vezes – tanto como cotista quanto pela ampla.
“Fizemos outra recomendação e a gente começou a pesquisar outros métodos que seriam possíveis e encontramos diversas aplicações no Brasil. Tanto a UFF quanto a Ufba aplicavam o método que demonstrou ter maior efetividade, que é a lista única”, diz.
Além do fracionamento permitir que exista uma burla à lei de cotas, não é incomum que exista uma confusão entre cargo público com especialidade, segundo a procuradora. “Só há um cargo criado por lei”, acrescenta, referindo-se à posição de professor do magistério superior.
Um dos motivos pelos quais a UFS recebeu a recomendação foi o concurso que o advogado Ilzver de Matos, professor do Departamento de Direito, participou em 2020 – mas só foi nomeado em 2023. Eram seis vagas para diferentes unidades. “No meu caso, a ineficácia do sorteio ficou explícita porque a vaga para negro foi para o curso de Ciências Contábeis. Nenhum negro tinha passado na primeira fase para essa área”, lembra.
Ilzver, segundo colocado na ampla concorrência em Direito, tinha sido o único candidato negro aprovado no concurso e que poderia usar a cota. O outro candidato negro foi aprovado em primeiro lugar de Enfermagem e, quando a pessoa é aprovada em primeiro lugar, ela não ocupa a vaga das cotas. O resultado foi que, no final, a cota não foi aplicada.
Algum tempo depois, surgiu outra vaga e ele foi convocado pelo departamento. No entanto, houve uma remoção interna, que é quando a universidade muda a lotação de um servidor, e a vaga foi distribuída para outro departamento. “Surgiram mais três vagas (até ele assumir efetivamente), mas, em nenhum momento, a universidade debateu a questão da política de cotas que não tinha sido aplicada de forma correta”.
Para o professor, ainda há pouca reação às oposições às políticas de cotas. Ele defende que as universidades assumam esse protagonismo. “As pesquisas mostram que elas foram omissas na aplicação, nesses dez anos”, diz ele, que cita um estudo do professor Luiz Mello, do departamento de Sociologia da Universidade Federal de Goiás. Em suas pesquisas, ele demonstrou que, de 2014 a 2018, apenas 12% das vagas para docentes foram oferecidas para negros, quando o percentual mínimo estabelecido por lei é de 20%.
Ainda que tenha assumido, Ilzver lamenta nunca ter havido um pedido de desculpas da instituição. “Nunca pensei em desistir, mas sofri muito. Via pessoas não negras entrando em concursos o tempo inteiro, enquanto eu, que briguei num processo de construção de currículo por 13 anos, passei por mérito com uma bela nota e em segundo lugar, nunca tive a política aplicada. A partir desses casos, a gente vê a perversidade que é mitigar ou burlar uma política pública”.
Em Sergipe, há uma ação civil pública em andamento na justiça federal para que exista reparação pelas falhas na aplicação da lei na UFS entre 2014 e 2019. “A gente constatou que teve um prejuízo de 41 vagas no edital para professores negros. E só de reserva no edital, não estou falando nem de reserva no concurso”, diz a procuradora Martha Carvalho.
A ação está na fase de instrução, mas ela lembra de outras universidades que já estão implementando políticas reparatórias voluntárias. Esse é o caso da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), que decidiu, este ano, aumentar o percentual de vagas para negros de 20% para 30%. “As universidades precisam aperfeiçoar seus métodos. Não estou falando de nenhuma específica, porque as falhas são muito comuns. Mas os efeitos são perversos”.
Convivência
Na UFF, a professora Rosana*, que atua na área de Exatas e Engenharias, quase perdeu a vaga depois de quatro meses de trabalho. Ela tinha feito o concurso em julho do ano passado e tomado posse em novembro. Seu concurso tinha mais de 70 vagas – dessas, 14 eram para cotistas negros. Apenas seis foram preenchidas. Pela regra do edital, as vagas não preenchidas por cotas voltam para a ampla concorrência.
Até que, no final de março deste ano, já dando aula em uma disciplina, recebeu um email do departamento de pessoal da instituição informando que a sua nomeação tinha sido tornada sem efeito.
“Não entendi o que estava acontecendo. Fui me informar e descobri que o candidato que ficou em primeiro na ampla concorrência tinha entrado com um mandado de segurança para ser nomeado”, explica.
A nomeação do outro candidato não chegou a acontecer porque Rosana não foi exonerada. “Cheguei a contratar um advogado, mas não foi preciso porque a própria universidade agiu, através de sua procuradoria, e minha nomeação voltou a ter validade”. Menos de um mês depois, ela conseguiu voltar ao cargo.
Rosana não sabia que esse tipo de situação acontecia. Só quando passou por isso e foi pesquisar sobre o assunto descobriu que outros docentes tinham passado pelo mesmo. “O chão embaixo da gente se abre. Primeiro que a gente passa para um concurso de 40 horas com dedicação exclusiva. Eu tenho filho para sustentar. É uma humilhação, fica parecendo que a gente entrou só pela cor da pele”.
Desde então, ela já ouviu de colegas que eles não concordavam com a forma do edital, porque a concorrência ficaria obliterada pelos cotistas, o que Rosana refuta.
Mesmo tendo voltado ao cargo, ela diz que não está 100% segura, uma vez que o processo está correndo. “Mas a alegria e a disposição que eu tinha de estar ali, no lugar que batalhei, murchou. Parece que você não pertence ao lugar”.
No departamento dela, há apenas dois professores negros – além da própria Rosana, um colega que entrou também por cotas. “Ouvir de um colega que se diz progressista que não concorda com esse modelo de edital é frustrante, porque você vê que é progressista até a página 2. Quando os atinge ou atinge um conhecido deles, passam a advogar em causa própria. É um progressismo de meia tigela. Não é a maioria, mas eles existem”.
Nem sempre, contudo, a Justiça acata os pedidos de candidatos da ampla concorrência. O professor Glênio Freitas, da UFU, teve que contratar um advogado depois que foi citado no processo movido pelo candidato que queria ser nomeado para a vaga no curso de Medicina. Formado em Enfermagem com doutorado em Epidemiologia, Glênio fez o concurso em 2022. Tal como acontece com a maioria dos processos hoje, era um edital para múltiplas vagas – dessas, cinco eram para cotas.
“Somente dois cotistas conseguiram passar pelas três etapas – prova escrita, didática e a heteroidentificação. Eu e esse outro colega fomos convocados, mas, no meu caso, teve a judicialização”, lembra. Ainda assim, o juiz que deu a sentença, porém, entendeu que a liminar do outro candidato não era procedente e negou. Glênio, que já estava nomeado, pôde tomar posse em março do ano passado.
O processo acabou perdendo o objeto quando o candidato da ampla também foi convocado porque, alguns meses depois, surgiu mais uma vaga e o concurso foi aproveitado. Hoje, os dois são colegas no mesmo departamento. Depois que tudo passou, conversaram e o outro disse que pediria para cancelar o andamento.
“Ele colocou que o processo não era contra mim e sim contra a universidade”, diz. O entendimento do agora colega era de que havia segregação – o que não havia, por se tratar de lista única. “A maioria das pessoas têm esse pensamento de que existe segregação de editais e não pode haver reserva de vagas. O que muito me deixa entristecido são as decisões do judiciário, porque cada um tem um entendimento diferente. Tenho um relacionamento saudável no departamento, inclusive com o candidato da ampla. Mas é muito além disso”.
Com falhas na aplicação, Lei de Cotas mudou pouco o perfil dos docentes até 2018
Depois de dez anos de vigência, a Lei de Cotas Raciais foi prorrogada justamente porque foi constatado que não houve a inclusão social efetiva prevista pela política pública. No caso do magistério superior, essa realidade é dramática. Um dos pontos para isso é que, em muitos casos, os editais não deixam clara a reserva específica para cotistas, como explica a professora Vanessa da Palma, doutora em Educação e docente do curso de Direito na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.
No doutorado, ela desenvolveu uma pesquisa analisando a efetividade da lei nos concursos para professores federais, com um levantamento de todos os concursos entre 2014 e 2017 em 63 instituições. Ela identificou que apenas 3% dos 20% das vagas reservadas realmente foram destinadas aos candidatos negros.
Outro fator que atrapalha essa efetividade é justamente o fracionamento de vagas. “Permitir a implementação de uma política de cotas raciais sem observar sua real aplicação é ferir as garantias fundamentais do princípio da igualdade”, pondera.
Segundo Vanessa, a reserva de vagas não garante a inclusão e a permanência de pretos e pardos nas universidades federais. “O sucesso dessa política depende de uma integração mais robusta com outras iniciativas, como treinamento e apoio aos docentes cotistas”, acrescenta a professora, que cita, ainda, problemas judiciais sobre fraudes e questões na heteroidentificação. “Observa-se um número considerável de discentes que ingressaram no ensino superior por meio da Lei de Cotas. Contudo, o mesmo não ocorreu com os docentes pretos e pardos, cuja representatividade avança de forma lenta”.
Na Ufba, desde que houve a mudança dos editais, em 2018, o percentual de professores negros aumentou, de acordo com o pró-reitor de Desenvolvimento de Pessoas, Jeilson Andrade. Em 2014, ano da implantação da lei, eram 62,7% de professores brancos; 28,1% eram pardos e 5,4% eram pretos.
Já em dezembro do ano passado, os professores brancos eram 51,1%, enquanto pardos eram 32,9% e os pretos eram 8,4% – chegando a 41,3% de negros. “Esse total inclui pessoas que entraram via cotas, mas também pessoas que já estavam. Mas te asseguro que essa presença de pessoas negras é bem induzida pela política a partir de 2019”.