Não há aqui nenhuma patrulha estética/ideológica – cada uma que faça o que quiser com seu cabelo, com seu corpo, com tudo o que lhe pertence por direito biológico. Cabelo alisado não é negação de identidade. Negras americanas e de países africanos estão aí para quebrar esse dogma. Só há pouco tempo, Michelle Obama parou de alisar a juba. E quem haverá de dizer que ela não é, lisa ou crespa, ideológica, cultural e esteticamente negra?
Mas, e se todas as brasileiras e os brasileiros acordassem, num exercício de realismo mágico, com os cabelos na textura natural – sem escova, sem chapinha, sem alisamento, sem formol? Se todas surgissem genuínas como nasceram? Todas com os cabelos lavados – seria um susto, talvez um constrangimento, por certo um dia extraordinário. Nuas no pixaim que a maioria de nós tem e, por razões totalmente respeitáveis, prefere esconder. Veríamos, finalmente, penduradas acima do pescoço a marca de nossa genética fundadora.
Até o início do século 15, portanto antes do devastador sequestro de negros para a escravidão, o cabelo era uma linguagem em muitas sociedades africanas ocidentais. O penteado era usado para indicar o estado civil, a origem geográfica, a idade, a identidade étnica e a posição social da pessoa, segundo a escritora Ayana D. Byrd e a jornalista Lori L. Tharps, em estudo publicado em 2001. Cada clã tinha seu próprio estilo. O cabelo era uma espécie de carteira de identidade do indivíduo.
Tem acontecido algo parecido no Brasil da primeira metade do século 21. Na quadra onde moro, de classe média/baixa, o fenômeno do encrespamento dos cabelos vem num crescendo. Cada dia, mais pixains desarvorados. É uma epidemia afirmativa que contagia mulheres de mamando a caducando. Nos ônibus, então, é uma mudança espantosa: os cabelos tomam conta da paisagem – de todas as texturas, de todos os comprimentos, de todas as cores, nos cortes os mais diversos.
Encrespou geral, mas ainda assim a dimensão do crespo brasileiro e da crespa brasileira está longe de ser visível a olho nu. Seria um bom recomeço simbólico: um dia nacional das crespas. Todas as mulheres sairiam às ruas, para o enfrentamento do dia, tal como vieram ao mundo, nuas em pelo crespo ou em pelo cacheado ou em pelo ondulado, designações de diferentes tipos de juba.
O cabeleireiro norte-americano Andre Walker teve a pachorra de classificar os tipos de cabelos humanos em quatro variações: os lisos (1), os ondulados (2), os cacheados (3) e os crespos (4), do fio mais esticado ao mais amassado. E, quanto mais encarapinhado, mais ressequido e frágil, embora a estrutura biológica de todos os cabelos humanos seja igual: proteínas mortas, compostas essencialmente de queratina, que também está presente nas unhas, nos pelos, nos chifres e nas penas.
Mais do que proteínas com a função primordial de proteger o cocoruto dos efeitos do raios solares, os cabelos são uma expressão estética no humano e, dentre eles, o crespo é a expressão estética mais contundente, porque desarvorada, arrebatada, torvelinha, desobediente, insensata, imperfeita, louca, desvairada, assanhada, desabusada, indomável. Das (poucas) coisas boas que nos tem acontecido, a revolução crespa é uma das mais belas e, tudo indica, irrefreável.
Fonte: Metrópoles