JUAZEIRO

“Precisamos de um discurso de esquerda alternativo”

Carta Maior conversou com o filósofo Vladimir Safatle, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e um dos mais instigantes analistas da cena política atual. Dotado de uma radicalidade não imobilista, o pensamento de Safatle joga luz nova sobre temas difíceis em torno dos quais a polaridade do campo da esquerda brasileira (PT versus não-PT) em geral patina, anda em círculos e não avança. Nesta entrevista à Carta Maior, o filósofo fala sobre as explosões populares (no mundo árabe e na Europa), a partir das quais alguns inferem a suposta agonia dos partidos políticos e discute os limites e trunfos conquistados pela chegada do PT ao poder no Brasil.

O filósofo rejeita a ideia de mudar o mundo sem conquistar o poder e cobra espaço institucional para que a mídia possa de fato refletir a sociedade, por exemplo, com jornais, rádios e tevês para universidades e sindicatos. Intelectual comprometido em provar que as idéias pertencem ao mundo através da ação, Safatle vê limites na ascensão da classe C sem mudanças radicais na repartição da riqueza e convoca seus pares: “Precisamos de um discurso de esquerda alternativo que esteja em circulação no momento em que as possibilidades de ascensão social (da chamada classe C) baterem no teto”. Por fim aconselha Lula a transformar seu instituto numa ‘internacional Lulista’ –um instrumento que ajude a esquerda latinoamericana a chegar ao poder. Leia a seguir a entrevista concedida por email:

Carta Maior – O longo descrédito com os políticos e suas siglas parece ter inspirado uma sentença cada vez mais freqüente no debate: a de que a forma partido está esgotada . Ao mesmo tempo, esse diagnóstico parece embutir um desejo conservador – que não é novo – de desqualificar a representação do conflito social. O que existe de esgotamento e o que existe de vontade de antecipar o funeral de um adversário incômodo?

Vladimir Safatle – Diria que temos um desafio de novo tipo. Primeiro, é certo que uma geração de partidos de esquerda se esgotou exatamente por não dar conta da representação do conflito social. Há uma camada de conflitos sociais que é simplesmente sub-representada ou invisível no interior da “forma partido”. No exterior, o exemplo maior disto é a expoliação econômica de imigrantes: pessoas sem voz no interior da dinâmica partidária. No Brasil, temos um embate em torno da dita nova classe média ao mesmo tempo que encontramos uma sub-representação de conflitos próprias à “velha classe pobre”. As revoltas dos trabalhadores em Jirau é um bom exemplo. Nenhum partido vocaliza tais revoltas.

CM – Há uma variante desse diagnóstico, à esquerda. Ela se apóia em evidências, como as recentes manifestações de rua no mundo árabe e na Europa, supostamente convocadas e coordenadas via facebook. Aqui parece haver um ludismo com sinal trocado na medida em que se dá à tecnologia tratos de um fetiche. Tudo se passa como se “a tecnologia partidos” tivesse se esgotado. E uma nova ferramenta, agora em versão mais potente, viesse a sucedê-los com vantagens. Entre elas a ausência de intermediários e de corrupção. Mistificação ou novo espaço público?

VS – É verdade, há muito de mistificação nesta maneira de anunciar a internet como a esperança redentora da política. O que ela fez foi, em larga medida, permitir o desenvolvimento de uma militância virtual e intermitente. É mais fácil fazer militância hoje, já que você pode operar da sua casa através de redes de contra-informação.

No entanto, insistiria que há uma tendência de mobilização social que tem pego os partidos a contra-pelo. Falta uma nova geração de partidos capaz de dar forca institucional a tais mobilizações. Este partidos talvez não funcionarão de maneira “tradicional”, mas como uma frente, uma federação de pequenos grupos que se organizam para certas disputas eleitorais e depois se dissolvem. É difícil ainda saber o que virá. Certo é apenas o fato de que os movimentos políticos mais importantes (revoltas na Grécia, Espanha, Portugal) parecem ser feitos atualmente à despeito dos partidos. O que limita seus resultados. Não creio que podemos “mudar o mundo sem conquistar o poder”. Quem gosta de ouvir isto são aqueles que continuam no poder. Para conquistar o poder, temos que vencer embates eleitorais.

CM – O debate sobre a irrelevância dos partidos convive com a realidade de um torniquete menos debatido: a captura da vida democrática pela supremacia das finanças. Ao normatizar o que pode e o que não pode ser objeto de conflito e de escrutínio, a hegemonia das finanças não teria engessado a própria democracia representativa? E assim contaminado todos os seus protagonistas com a sombra da irrelevância?

VS – Certamente. Este é um dos limites da democracia parlamentar. Não há como escaparmos disto no interior da democracia parlamentar. Só se contrapõe ao domínio do mundo financeiro através de um aprofundamento da democracia plebicitária, como a Islândia demonstrou ao colocar em plebiscito o auxílio estatal a um banco falido. Devemos simplesmente deslocar questões econômicas desta natureza para fora da democracia parlamentar. Um Estado não pode emprestar bilhões para massa financeira falida sem uma manifestação direta daqueles que pagarão a conta. O problema é que vivemos em uma fase do capitalismo de espoliação.

CM – A mídia é muitas vezes apontada como a caixa de ressonância dessa subordinação do conflito aos limites da finança. Nesse sentido a sua regulação não seria tão ou mais importante que o financiamento público de campanha?

VS – Acho que a sociedade ocidental (e não apenas a brasileira) precisa, de fato, encarar a defasagem das leis a respeito da regulação econômica da mídia. Trata-se de um dos mercados mais oligopolizados e concentrados do planeta, o que está longe de ser algo bom para a democracia. Seria importante que houvesse um sistema que facilitasse a entrada de novos atores no campo midiático. Não consigo admitir, por exemplo, que universidades públicas, sindicatos e associações tenham tão pouca presença em rádios, televisões e jornais.

CM – O PT no Brasil condensa todos esses impasses ao personificar, na opinião de alguns, uma trágica verdade: o preço do poder é a necrose da identidade mudancista. Isso é fatal? Ou dito de outro modo:um partido depois de passar pelo poder ainda pode suprir o anseio de mudança da sociedade?

VS – Ele pode suprir tais anseios, mas desde que esteja realmente disposto a avançar nos processos de modernização política e criatividade institucional, o que não creio ter sido o caso do PT. Há um profundo déficit de participação popular nos governos do PT. Claro que se olharmos para a direita brasileira (PSDB e seus aliados) a situação é infinitamente pior. Mas o PT, neste ponto, tem nos obrigado a votar fazendo o cálculo do mal menor. Ele tirou da sua pauta o aprofundamento de mecanismos de participação popular. O resultado será um embotamento político que pode se voltar contra a própria esquerda.

CM – Algumas avaliações dizem que o governo Lula foi em parte a causa desse entorpecimento petista. Outros sugerem que o próprio Lula foi refém de uma energia política insuficiente para promover um projeto de mudança mais profundo na sociedade. Que ponto da régua estaria mais próximo da realidade em sua opinião?

VS – Creio que Lula foi bem sucedido em ser uma espécie de Mata Hari do capitalismo global. Ele soube jogar em dois tabuleiros, um pouco como Getúlio Vargas. Sua política foi bipolar. Por exemplo, enquanto recebia George Bush falando que era seu maior aliado, seu partido fazia manifestações contra a vinda do próprio George Bush. O resultado final deste processo foi criar um sistema muito parecido àquele deixado por Vargas. O PT é, hoje, herdeiro direto do PTB. O PMDB parece uma espécie de PSD sem uma figura carismática como Juscelino e a oposição esmera-se no seu figurino UDN. Bem, é triste perceber que, quando o Brasil começa a andar, ele sempre volta ao mesmo ponto de estabilidade política. Parece que nunca conseguimos ultrapassar este mecanismo bipolar.

CM – O Governo Dilma será a culminância dessa acomodação histórica? Ou a crise mundial pode destravar o processo e inaugurar um novo ciclo, na medida em que impõe escolhas duras entre desenvolvimentismo versus financeirização?

VS – Creio que o governo Dilma será um governo que usará a margem de manobra fornecida pelo crescimento econômico em uma era onde as economias dos países europeus (assim como os EUA) continuarão em crise. Neste sentido, nossa única esperança concreta de mudança virá quando a dita nova classe média perceber que ele só continuará seu ciclo de ascensão se não precisar gastar fortunas com educação e saúde privadas. No entanto, a consolidação de um verdadeiro sistema público de educação e saúde não será feito sem uma pesada taxação sobre a classe rica e um aumento considerável na tributação da renda. Isto, em um país como o Brasil, tem o peso de uma revolução armada. Vejam que engraçado, vivemos em um país onde a implantação de um modelo tributário das sociais-democracias europeias dos anos 50 equivaleria a uma ação política da mais profunda radicalidade. Não creio que o PT fará algo neste sentido. Mesmo a discussão a respeito de um imposto sobre grandes fortunas foi abandonada. Precisamos de um discurso de esquerda alternativo que esteja em circulação no momento em que as possibilidades de ascensão social baterem no teto.

CM – O que seria uma agenda relevante para Lula e o seu Instituto numa conjuntura como essa de flacidez partidária e atritos duros entre desenvolvimento, igualdade e acomodação à crise?

VS – O melhor que seu Instituto poderia fazer é organizar uma espécie de Internacional lulista que ajude a esquerda a vencer em países da América Latina.

Fonte: Carta Maior

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