Em todo o ano passado, quando as crianças ficaram em casa por causa do fechamento das escolas, nenhuma denúncia de abuso infantil foi encaminhada ao projeto Eu Tenho Voz.
O apagão de denúncias durante a pandemia levou as juízas responsáveis pelo projeto a mudar seu formato e oferecer curso de capacitação aos professores para que possam identificar e acolher os casos de abusos agora que as crianças estão voltando às escolas.
“Os dados mostram que 80% dos casos de abuso acontecem dentro da própria casa da criança. Ou seja, na pandemia, ela ficou trancafiada em casa com o seu abusador, sem que ninguém pudesse identificar os sinais de violência”, diz a juíza Hertha Helena de Oliveira, coordenadora do projeto.
Relatório do Instituto Sou da Paz, feito em parceria com o MPSP (Ministério Público de São Paulo) e o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), indica que a pandemia favoreceu a subnotificação de crimes sexuais contra crianças. Além da situação sanitária, o Disque 100, que recebe esse tipo de denúncia, sofreu um desmonte sob o governo Jair Bolsonaro (sem partido).
O projeto Eu Tenho Voz começará a circular por escolas estaduais nas próximas semanas para ajudar no acolhimento das crianças no retorno às aulas.
A iniciativa foi criada em 2016 pelo Ipam (Instituto Paulista de Magistrados) para prevenir crimes de abuso sexual, físico e psicológico contra crianças e adolescentes. Até o ano passado, o projeto funcionava com visitas às escolas, onde as crianças assistiam a uma peça de teatro sobre o assunto e recebiam orientações dos juízes. Em 2019, 22 escolas receberam o projeto e em apenas 1 delas não houve nenhuma criança que procurou ajuda. Nas demais, foram feitas 95 denúncias -42 delas sobre abusos sexuais.
“As vítimas têm medo de contar, e até mesmo de entender, o que está acontecendo em casa. Por isso, é importante que a escola saiba acolhê-la”, diz Tânia Ahualli, presidente do Ipam.
Com a retomada das aulas presenciais nas escolas estaduais de São Paulo, as juízas decidiram retomar o projeto que não pôde acontecer durante a pandemia. No entanto, como elas ainda não podem frequentar as unidades pelas restrições de segurança ao Covid-19, decidiram alterar o formato.
O projeto irá neste ano focar em aulas de formação para os professores para que eles possam identificar sinais de abuso nos alunos e ajudá-los a contar o que estiverem passando.
“A criança costuma dar sinais de que está sendo violentada, mas é preciso saber identificá-los e depois dar segurança para que ela relate o abuso. Ela precisa se sentir segura”, diz Oliveira.
Depois da formação dos professores, o programa irá levar filmes que ajudem as crianças a identificar e entender os abusos. Foram filmadas quatro histórias que tratam do assunto de forma acessível para alunos de até 4 anos de idade.
Uma das histórias, por exemplo, é sobre uma fada que é dissuadida por uma sombra para deixá-la tocar em sua asa. A fada perde o brilho quando é tocada pelo outro personagem e só consegue recuperá-lo quando conta o ocorrido para a mãe.
Com o novo formato e a formação dos professores, as juízas acreditam que possam alcançar um número maior de crianças e adolescentes. A previsão é de que nos primeiros meses seja possível dar o curso a 300 professores da rede estadual.