Um professor pode dizer que não há justificativa ética para se criticar a democracia. Mas, não nos enganemos, assim age mais como ideólogo que como professor. Em termos filosóficos, está errado. Em termos históricos, está desinformado.
Nossa cultura filosófica tem um passo inicial decisivo com Platão. Chegamos até a dizer, junto com o filósofo americano Whitehead, que toda a filosofia ocidental nada é senão um conjunto de notas de rodapé na obra de Platão. E a República de Platão é do começo ao fim uma crítica ética à democracia. A filosofia nasce praticamente contra a democracia ou, digamos, contra o silêncio em relação à perfeição da democracia ateniense. Os argumentos comentados por Sócrates lembram bem de como não podemos tratar democraticamente uma serie de situações. Aliás, o saber dos “muitos” nunca foi melhor, em nada, que os saber dos que sabem. Nenhum de nós voaria com um piloto sem saber técnico, mas apenas votado por nós entre os passageiros da aeronave.
Isso não quer dizer que uma pessoa que estuda filosofia ou que é um platonista deva, na vida atual, gostar de ditaduras, ser um totalitário ou só conseguir justificar ditaduras ou regimes totalitários. Essa foi uma tese perigosa, defendida por Popper, contra todo tipo de historicismo, e emendando uma doutrina pouco historicista como a de Platão ao que ele via como o inimigo de sua querida democracia liberal. Todavia, exceto isso, a maior parte dos filósofos sempre viram que podemos muito bem, e até devemos, estudar muito Platão para entender de justiça, mesmo que tenhamos, na vida prática pessoal, que fazer uma defesa da democracia.
Um professor não é um bom professor se inventa de dizer para o aluno a mentira de que não temos como fazer a crítica da democracia. Essa ideia de que toda crítica à democracia precisa durar cinco minutos e, logo em seguida, temos de encontrar um meio de não exerce-la, e sim partir para o aperfeiçoamento da democracia, pode muito bem nos levar a não aprender talvez o que há de melhor na cultura ocidental. Leríamos Diderot, uma vez que ele foi materialista, mas não leríamos Voltaire, porque este dizia que, para o povo, seria sempre bom ter uma religião. Assim, Voltaire tinha sugestões menos liberais-democráticas que as de Diderot. Todavia, seria uma bobarem grande dizer que eticamente Voltaire era menos louvável que Diderot. O professor que assim ensina não ensina nada. Na verdade, ele próprio mostra bem não saber muita coisa.
A filosofia e a política sempre mantiveram relações tensas. Peter Sloterdijk disserta assim sobre o assunto:
A melhora maneira de reproduzir as complexidades históricas na relação entre filosofia e política seria através de quatro modificações da relação senhora-criada. A filosofia antiga apresenta-se como uma senhora que queria fazer da política a sua criada. Na era cristã, tornou-se, ela própria, criada da teologia. A filosofia moderna fez uma nova tentativa de tornar-se senhora do mundo, mas só conseguiu levá-la a cabo libertando dos seus serviços as ciências que, pro sua vez, passaram a ser as criadas da técnica. A filosofia acaba de perder a batalha pelo poder em toda a linha (…). Depois da derrota, a filosofia disponibilizou-se para ser a criada, ou a porteira, da democracia. Esta subalternização final caracteriza a filosofia acadêmica da atualidade, e imprime-lhe duma maneira quase universal uma consciência infeliz, tanto no que diz a respeito à sua concepção do mundo como à sua concepção escolástica. Desde transferência de soberania da teoria para a arte moderna, uma filosofia não subalterna só já é possível através da aliança com as artes.”[1]
Sloterdijk tem razão: qual filósofo hoje teria a coragem de não defender a democracia? Claro, tivemos filósofos que não a defenderam, recentemente. Não falo de Heidegger, que deu uma boa paquerada com o nacional socialismo. Falo de Sartre, que viu sua postura filosófica própria, estranhamente, articulação com o comunismo. Mas, filósofos assim, como Sartre, diziam defender um novo tipo de democracia, a “democracia popular”, que seria mais capaz de promover a liberdade que a democracia liberal. Na verdade, é difícil hoje não concordar com Richard Rorty, que diz que não é a filosofia que fundamenta a democracia, mas é esta, garantindo a liberdade, que permite que filosofemos. Todavia, essa posição não deve nos iludir a ponto de não sermos capazes de ver que, mesmo se gostamos da democracia, é uma tolice dizer que não conseguimos defesa ética do questionamento até radical da democracia.
Os exemplos de confusão estão postos hoje, não como no passado recente, com a Guerra Fria, mas existem, sim, e de uma forma tão ou mais angustiante. Por exemplo: há várias formas de defesa ética para a suspensão do direito à privacidade, se uma coletividade está ameaçada por terroristas. Não discuto aqui o melhor e o pior. Acho que a suspensão de direito à privacidade, para combate ao terrorismo, é sempre uma vitória do terrorismo. Todavia, tenho de admitir que há defesa não puramente militar, mas ética, no sentido de certas suspensões de direito à privacidade. Por exemplo, qualquer hedonismo utilitarista diria, com certa razão, que importa mais a segurança de muitos que o privilégio de poucos ou o privilégio de muitos em um momento em que todos correm perigo, principalmente se nos fosse garantida a intervenção nos direitos de privacidade de modo cirúrgico, momentâneo.
Temos sempre, como professores, de fazer pensar. Nossos discursos apaixonados, por mais bonitos que pareçam, principalmente se parecem bonitos, são um perigo para nossa inteligência. E se abrimos mão da inteligência, então, nada de fato resta de bom para comemorar. Um professor não tem o direito de não ser inteligente.
Paulo Ghiraldelli, filósofo 30/12/2015
[1] Sloterdijk, P. Morte aparente no pensamento. Lisboa: Relógio D’Água, 2014 pp. 67-8.
Apêndice: veja o escorregão do professor aí abaixo, no 1:13: “Não se deve nunca questionar a democracia”. É um erro crasso. Como “não se deve”. A democracia virou sacrossanta?