Faz 41 anos que Enedina Alves Marques faleceu de infarto. Sozinha em seu apartamento, localizado na Rua Emerlino Leão, no centro de Curitiba, foi encontrada caída no chão frio e azulejado da cozinha. Aos 68 anos, a saúde debilitada e o corpo desgastado pela ação do tempo, terminou seus dias tragada pelo anonimato e pela invisibilidade a que são submetidos milhares de seres humanos, especialmente as mulheres.
O apagamento de seus feitos em vida pouco contrasta com as homenagens póstumas, incapazes de projetá-la para fora do labirinto do descaso. Mas as homenagens, cabe reconhecer, são esforços salutares na tentativa de inscrever a história da personagem nos anais da memória nacional.
Enedina faleceu em agosto de 1981, durante o rigoroso inverno paranaense. Foi preciso descer a sepultura para que traços de sua trajetória fossem recompostos e alguns agraciamentos pipocassem na cidade que ajudou a construir. No bairro do Cajuru, em Curitiba, uma rua foi batizada em sua homenagem. O Memorial da Mulher, também na capital paranaense, outorgou seu nome entre as 53 mulheres “notáveis” – todas elas brasileiras. Maringá, cidade vizinha, não ficou à deriva e inaugurou o Instituto de Mulheres Negras Enedina Alves Marques, reverenciando a personagem.
Ora, estimada leitora, ante a listagem dos tributos, cabe a pergunta: quem foi Enedina Alves Marques? Qual sua contribuição para história do Paraná, que a laureou em distintos espaços públicos e instituições privadas?
Nascida em 13 de janeiro de 1913, em Curitiba, Enedina era filha de negros imigrantes que chegaram à cidade em busca de melhores condições de vida. Numa Curitiba majoritariamente rural, marcada pelo mandonismo e que ensaiava um processo de urbanização, a família de Enedina, cuja procedência desconhecemos, somava-se às centenas de brasileiros e imigrantes europeus estabelecidos na região. Sua mãe, Virgília Alves Marques, provia o sustento da prole trabalhando em casas de família e lavando roupas daqueles que a contratavam. Enquanto isso, seu pai, Paulo Marques, prestava pequenos serviços de reparos em moradias e chácaras para custear as demais despesas familiares.
O matrimônio de Virgília e Paulo sucumbiu ao desgaste originado das brigas do casal, algo que empurrou a matriarca, junto com os filhos, a irem morar na casa onde Virgília trabalhava. Agora, num cômodo apertado e pouco ventilado, viviam na propriedade de Domingos Nascimento, importante intelectual republicano paranaense.
Os anos de Enedina na nova casa foi marcado pelo trabalho doméstico, brincadeiras com os filhos do republicano e por leituras esporádicas nos momentos de descanso. O acesso aos livros que circulavam pela moradia despertou o interesse da personagem pelos estudos, alfabetizada aos 12 anos numa cidade em que a maioria dos habitantes eram iletrados. O empenho nos estudos resultou em sua diplomação no ensino primário e, tempos depois, na conclusão do “ensino complementar” que a credenciava como “professora normalista”. Outorgado seu novo status, passou a lecionar em diferentes escolas do interior paranaense.
Com o ingresso no serviço público, Enedina substituiu a vassoura pelos livros e os serviços como empregada doméstica foram temporariamente interrompidos. Agora se dedicava a cuidar de sua própria casa, adquirida com recursos obtidos na docência, bem como no letramento dos estudantes.
Enedina era incansável. Conciliava as muitas aulas nas escolas regulares com serviços voluntários prestados aos desassistidos – crianças e adultos. E aqui serviço tem uma conotação objetiva: significa “servir ao outro”, “servir ao humano”. Por isso, recebia pessoas em sua casa, promovia cursos de alfabetização, atendia populações vivendo em rincões pouco visitados, inclusive pelo governo local, pouco interessante em suprir as demandas básicas dos desafortunados.
O parco salário de professora a impossibilitava de bancar um curso universitário em Engenharia Civil, algo com o qual sonhava desde a formação no magistério. Naquele período, meados de 1930, havia uma determinação legislativa aos postulantes do curso de Engenharia: precisavam fazer uma capacitação profissional de três anos, desembolsando recursos próprios, numa etapa chamada “Curso complementar”. Somente após o fim da jornada, ratificada a “aptidão”, estavam autorizados a seguirem para Universidade.
Com o intuito de viabilizar a formação superior, decidiu conciliar as aulas na escola com trabalhos em casa de família – a falta de recursos, portanto, e a determinação da graduação, fizeram Enedina relembrar os anos trabalhando como empregada doméstica. Na nova empreitada, escolheu a casa de Iracena e Mathias Caron, família curitibana de muitas posses e com inserção nos altos escalões hierárquicos da Curitiba novecentista. A família, inclusive, ciente das habilidades da contratada, aproveitava tanto suas habilidades no cuidado com a casa como a facilidade no trato das letras e dos números. Nesse sentido, pediam à professora que alfabetizasse seus filhos nos intervalos das faxinas e demais cuidados da moradia. Uma mulher negra e pobre, vejam só, letrando as crianças ricas de uma cidade até hoje manchada pelo racismo.
A dupla jornada de trabalho regular (professora – empregada doméstica) possibilitou que Enedina juntasse recursos, ingressasse no curso complementar e saísse dele diplomada – isso nos idos de 1939. No mesmo ano, redigiu um requerimento endereçado ao diretor da Faculdade de Engenharia do Paraná (FEP) solicitando sua inscrição nos exames de habilitação para graduação em engenharia civil. O pedido foi deferido e a data do exame foi marcada.
Após ser aprovada nos exames, apresentar a documentação exigida e fazer o pagamento da matrícula, Enedina ingressou como caloura no curso de engenharia civil destinado a formar a elite paranaense. Única mulher da turma, única negra, única trabalhadora de origem pobre, Enedina Marques dinamitou as barreiras impostas por àqueles que tentaram interditar seu sonho.
Fonte: Pragmatismo Político